Histórias Incríveis: tiro de Euclides da Cunha desgraçou jogador do Bota
Dinorah viu irmão matar escritor, levou tiro, seguiu jogando pelo Alvinegro e foi campeão antes de enlouquecer e se suicidar, miserável e inválido
A sequência de acontecimentos atiça a incredulidade: jogador do
Botafogo é baleado por Euclides da Cunha, participa da morte do
escritor, enfrenta o Fluminense com uma bala cravada na espinha uma
semana depois de levar o tiro, é campeão carioca no ano seguinte
(enquanto perde parte dos movimentos do corpo), vai parar em um
hospício, vira mendigo e suicida-se, miserável, inválido e louco, no Rio
Guaíba, em Porto Alegre. De tão absurda, a história parece um roteiro
ruim, uma tragédia grega, um causo qualquer. Não é. É incrível, mas
absolutamente real - é a história de Dinorah, herói nos campos, vilão na
sociedade, vítima em uma tragédia de sangue, amor, traição, literatura e
até futebol.
Faz mais de um século. A morte de Euclides da Cunha, a cada punhado de
anos, é recontada - ora pelo viés dele, ora com foco em sua esposa,
Anna, ora concentrada em Dilermando, o amante dela. Dinorah é a vítima
(quase) esquecida daquela manhã de domingo em que o autor de "Os
Sertões" pegou um revólver para lavar sua honra. De 15 de agosto de
1909, quando foi baleado pelas costas, até 21 de novembro de 1921,
quando cometeu suicídio, o zagueiro do Botafogo viveu uma decadência
assombrosa. É uma maldade do destino: ele teve sua vida destruída pelas
mesmas mãos que escreveram um dos principais livros da história
brasileira.
O Botafogo campeão de 1910, com Dinorah, já debilitado pelo tiro de Euclides da Cunha (Foto: Reprodução)
Abaixo, o leitor conhecerá a trajetória, da glória à desgraça, do
jogador campeão carioca de 1910 - título que deu ao Botafogo a alcunha
de Glorioso. O relato é baseado em reportagens de jornais durante mais
de dez anos e em livros escritos sobre a "Tragédia da Piedade". Em meio a
uma série de contradições e versões confusas, esta reportagem prefere
se basear especialmente em "Matar para não morrer", da historiadora Mary
del Priore, obra lançada em 2009 pela editora Objetiva.
Vera Fischer viveu Anna, e Guilherme Fontes foi
Dilermando em "Desejo" (Reprodução/TV Globo)
Dilermando em "Desejo" (Reprodução/TV Globo)
A tragédia também foi encenada na televisão. Entre maio e junho de
1990, a TV Globo lançou uma série chamada "Desejo". Em 17 capítulos, a
autora Gloria Perez e os diretores Wolf Maya e Denise Saraceni contaram a
saga de traição e morte do escritor. Dinorah foi interpretado por
Marcos Winter. Tarcísio Meira deu pele a Euclides da Cunha. Vera Fischer
encarnou Anna, e Dilermando foi vivido por Guilherme Fontes. Marcelo
Serrado, Marcos Palmeira e Vera Holtz também participaram da produção.
A preparação para a tragédia
A preparação para a tragédia
Dilermando e Dinorah não deixavam olhares passarem despercebidos em
idos da primeira década do século 20. Eram jovens, fortes - o primeiro
de cabelos mais claros do que o segundo. Tinham características
parecidas, como se um irmão fosse a sombra do outro: ambos viajados (do
Rio Grande do Sul para São Paulo, de São Paulo para o Rio de Janeiro),
ambos ligados à carreira militar, ambos atléticos. Os dois eram
devotados aos esportes. Mas com aptidões diferentes. Dilermando era
esgrimista dos bons. Dinorah preferia usar os pés. Jogava foot-ball, um sport que se espalhava pelos grounds (campos) cariocas e começava a se popularizar.
JOGOS PELO BOTAFOGO |
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09/05/1909 – 2 x 2 Fluminense 30/05/1909 – 24 x 0 Mangueira 13/06/1909 – 2 x 1 América 11/07/1909 – 13 x 0 Hadock Lobo 22/08/1909 – 1 x 2 Fluminense 12/09/1909 – 2 x 1 Cruzador Amethyst-ING 19/09/1909 – 4 x 3 Cruzador Amethyst-ING 26/09/1909 – 1 x 1 América 02/10/1909 – 2 x 1 A A Palmeiras 22/05/1910 – 1 x 4 América 05/06/1910 – 9 x 1 Riachuelo 26/06/1910 – 3 x 1 Fluminense 03/07/1910 – 7 x 0 Hadock Lobo 10/07/1910 – 6 x 0 Rio Cricket 17/07/1910 – 4 x 4 São Paulo Athletic 15/08/1910 – 7 x 2 A A Palmeiras 07/08/1910 – 5 x 0 Rio Cricket 04/09/1910 – 15 x 1 Riachuelo 25/09/1910 – 6 x 1 Fluminense 02/10/1910 – 11 x 0 Hadock Lobo 12/10/1910 – 2 x 1 Combinado Carioca 06/11/1910 – 4 x 4 Fluminense 13/11/1910 – 5 x 2 São Cristóvão 07/05/1911 – 1 x 2 São Paulo Athletic 14/05/1911 – 3 x 0 Rio Cricket 23/07/1911 - 3 x 4 Americano-SP |
Era esguio. Alto, também conseguia ser veloz. Sua missão era desarmar os forwards
(atacantes) adversários, mas se arriscava a ir ao ataque de vez em
quando. Fazia seus golzinhos - foram nove em 26 jogos pelo Botafogo,
seis deles na goleada de 13 a 0 sobre o Hadock Lobo. Tão logo chegou ao
Rio, já com a vivência de ter atuado pelo Internacional-SP, foi defender
as cores do América. Na zaga rubra, foi aliado de Belfort Duarte,
símbolo de disciplina, defensor que tinha asco a faltas. Jogou dois anos
lá. Em 1909, trocou de time. Resolveu defender o Botafogo, sem ter
ideia da desgraça que o destino bordava para sua vida.
Dinorah vivia dias simples. Jogava bola e tinha aulas na Escola Naval.
Mas seu irmão era mais inquieto. Com 17 anos, trocava olhares com uma
mulher bem mais velha, de 33. Pior: casada. Pior ainda: casada com um
dos brasileiros mais célebres na época. Qualquer possibilidade de
envolvimento seria um escândalo, uma bomba-relógio. Não poderia
acontecer. Mas aconteceu.
Foi na Pensão Monat, no número 17 da Rua Senador Vergueiro, no bairro
do Flamengo, que Dilermando e Anna começaram o romance proibido. Em
1904, Euclides partiu para uma expedição na Amazônia. Retornou apenas em
1906 - tarde demais para evitar um tórrido relacionamento entre sua
esposa e aquele adolescente.
Anna foi morar naquela pensão para aplacar a solidão. Lá, viviam duas
amigas de sua mãe, Angelica e Lucinda Ratto. Elas eram tias de
Dilermando e Dinorah. Solteironas e futriqueiras, logo perceberam algo
de estranho no ar. Em um piscar de olhos, a história se espalhou. E
chegou aos ouvidos do escritor - que, inicialmente, não acreditou nos
rumores.
Dinorah nada tinha a ver com a história. No auge do romance, estava em
São Paulo, defendendo o Internacional. Não acumulava grandes
preocupações. Pressão mesmo era Anna quem sofria. Para evitar maiores
fuxicos, Dilermando se mudou. Mas os encontros prosseguiram. As
suspeitas aumentaram. A situação começou a ficar incontrolável. O
casamento virou um inferno.
Dilermando chegou a escrever uma carta para Euclides, alegando
inocência. O escritor respondeu, dizendo a ele que se tranquilizasse:
"Na sua idade nunca se é um homem baixo. Não creio que houvesse feito
uma tal injustiça. A minha casa continua aberta aos que são justos e
bons. Não poderá fechar-se para você."
Puro teatro. Anna estava grávida de Dilermando, e Euclides percebia a
barriga crescendo. Em meio ao caos, Mauro nasceu prematuro - a mãe, em
vão, tentara abortar, inclusive inserindo agulhas no corpo. A criança
nasceu, mas morreu com oito dias de vida. Houve quem acusasse Euclides
de matar o bebê, impedindo que a esposa o amamentasse.
Os protagonistas da história viviam o inferno. Euclides lidava com a
traição; Anna carregava a fama de adúltera; Dilermando se equilibrava
entre uma paixão proibida e a dor pela perda do filho. A situação foi
amenizada em 1906, quando o militar foi convocado pelo Exército para
retornar ao Sul. Mesmo assim, no ano seguinte, em visita ao Rio, ele
reencontrou Anna. E a engravidou.
Nasceu Luiz, o Lulu. Era loiro, feito Dilermando, diferente dos filhos
de Euclides - "uma espiga de milho em meio a um cafezal", como definia,
ironicamente, o escritor. O filho bastardo não melhorou em nada o
ambiente. E, em 1909, o triângulo amoroso chegou ao limite do
insuportável, ficou a ponto de bala - de uma bala que arruinaria a vida
de Dinorah, de volta ao Rio um ano antes.
Matar ou morrer
Dinorah na porta da casa onde ocorreu a tragédia
em 1909 (Foto: Reprodução)
em 1909 (Foto: Reprodução)
No sábado, 14 de agosto de 1909, Dinorah recebeu um pedido de Anna e
Dilermando: que fosse à Rua Nossa Senhora de Copacabana observar,
escondido, o máximo possível do comportamento de Euclides. O jogador,
que há pouco soubera do relacionamento, acatou a solicitação. Afinal,
era grande o temor na pequena casa da Estrada Real de Santa Cruz, na
Piedade, onde agora moravam os irmãos. Solon, filho de Anna com
Euclides, ouvira o pai jurar vingança. A apreensão pesava sobre os
amantes.
Dinorah pouco conseguiu escutar. Ao retornar para casa, teve que
acalmar Solon, perturbado com todo o absurdo da situação - a mãe se
relacionando com um rapaz pouco mais velho que ele, o pai prometendo
matar os traidores. Eles jogaram uma partida de xadrez.
Tranquilizaram-se. E foram dormir - para depois despertar no dia que
mudaria suas vidas.
Chovia. Euclides da Cunha escolheu sua pior roupa naquela manhã de
domingo: uma calça de casemira escura, uma ceroula branca de linho, uma
camisa de linho branco e uma camisa interna de flanela. No bolso,
posicionou um revólver Smith and Wesson. Carregado. Pegou o trem na
estação central e rumou para o subúrbio. Como não sabia onde era a casa,
pediu informações a vizinhos. Até que a encontrou.
A moradia de número 214 era simples - uma construção de um pavimento,
com duas janelas de venezianas, um portão baixo na entrada e um jardim
enfeitado por um mamoeiro. Por volta de 10h, Dinorah observava o
movimento da rua quando percebeu a presença de Euclides da Cunha.
Assustado, virou-se para dentro da casa e avisou que ali estava o
escritor. Acharam que era brincadeira dele. Mal sabiam que era o extremo
oposto disso.
Dilermando rumou para seu quarto. Foi colocar seu traje militar. Anna e
Solon se esconderam. E Euclides disse a Dinorah que queria falar com o
irmão dele. Adentrou o portão. Invadiu a casa. Gritou: "Vim para matar
ou morrer!". E depois arrombou o dormitório principal com um chute na
porta, seguido de dois tiros. Começava o derramamento de sangue.
Dinorah, para proteger o irmão, pulou em Euclides. Os dois se
engalfinharam. O escritor disparou duas vezes na direção do jogador - um
tiro pegou de raspão. O zagueiro se levantou e correu na direção de
outro quarto, onde pretendia pegar uma arma. Não chegou lá. Levou um
tiro pelas costas, abaixo da nuca. Desabou.
"Revista da Semana" mostra foto do velório de Euclides da Cunha (Foto: Reprodução)
Mas Dilermando também tinha uma Smith and Wesson. E ela também estava
carregada. Com Dinorah caído, seu irmão e o escritor passaram a trocar
tiros. Dilermando foi atingido abaixo da garganta, acima do estômago e
no tórax. Sobreviveu. Euclides foi baleado no ombro direito, no braço
esquerdo e no lado direito do peito. O último tiro, de uma bala de 17
milímetros de comprimento por nove de largura, foi fatal. O autor de "Os
Sertões" cambaleou até o jardim, onde caiu morto, abatido pelo amante
de sua mulher. Em um último suspiro, deixou uma frase de efeito, em uma
derradeiro gesto literário - mas cujo teor varia na descrição de cada
jornal da época.
- Sofri muito... matei... morro... mas perdôo - segundo o "Jornal do Brasil".
- Odeio-te, mas te perdôo - de acordo com "O Paiz".
O início do fim
Dinorah vive decadência: vira mendigo e vai parar
em hospícios (Foto: Reprodução)
em hospícios (Foto: Reprodução)
Foi o fato do ano. Os jornais se esbaldaram com o escândalo.
Inicialmente, para proteger a honra de Euclides, compraram a tese
(elaborada pelos irmãos e por Anna) de que o escritor agira em um
impulso paranoico, envolvido pelas fofocas de Angelica e Lucinda Ratto.
Por poucos dias, Dilermando e Dinorah foram tratados como vítimas de um
desvio mental do intelectual. Eram elogiados!
- Dinorah de Assis, de exemplar comportamento e maneiras distinctas, é
considerado excellente sportman. Tem grande predilecção pelo foot-ball,
como hontem dissemos, occupando saliente lugar no 1º "team" do Botafogo
Football Club, à rua Conde de Irajá - escreveu o "Jornal do Brasil".
- Dinorah de Assis, além de ser um excellente moço, de comportamento
exemplar, nas horas de lazer, era um dedicadíssimo sportman. O seu sport
predilecto era o foot-ball. Devido ao seu conhecimento profundo desse
jogo, tem uma collocação de responsabilidade no 1º team do Botafogo
Foot-Ball-Club, à rua Conde de Irajá. Em todos os matches em que Dinorah
tomava parte, quer aqui, quer em S. Paulo, destacava-se pelas suas
excellentes qualidades de eximio foot-baller - derreteu-se o "Correio da
Manhã".
Mas isso logo mudaria. Com o aprofundamento das investigações
policiais, ficou evidente que Dilermando e Anna tinham mesmo um caso,
que Euclides efetivamente foi traído - e que Dinorah foi cúmplice do
romance. A postura da imprensa, da noite para o dia, mudou radicalmente.
Os irmãos passaram a ser perseguidos. Viraram vilões. E Dinorah não
colaborou para amenizar isso.
Ele passou cinco dias entre hospitais e delegacias. Tentou invadir o
local do crime, já que estava sem casa, e foi prontamente criticado
pelos jornais. No domingo, veio a rebeldia maior: resolveu que iria a
campo pelo Botafogo contra o Fluminense.
Foi um choque para a sociedade. Parecia absurdo que aquele rapaz,
envolvido na maior tragédia do ano, trocasse o luto pelos uniformes de
jogo, pelas chuteiras, apenas uma semana depois do ocorrido. Mas ele não
quis saber. Foi mesmo assim - e como atacante. Detalhe: seguia com a
bala cravada em sua espinha!
O Fluminense jogava em casa, e sua torcida era maioria. Ver Dinorah com
a camisa alvinegra acirrou a antipatia do público pelo adversário,
conforme relatou na época o "Jornal do Brasil".
- Às 3.12, quando, precedidos do referee Sr Wood, entraram os dous
teams para o ground, victoriaram-nos prolongadas palmas e vivas, sendo
que bem se notava ser maior a sympathia pelo Fluminense, que augmentou
ainda ao ver-se entre os forwards do Botafogo o Sr Dinorah de Assis, um
dos tristes protagonistas da tragedia da Piedade - escreveu o jornal.
O Fluminense venceu por 2 a 1. Dinorah não fez gols. Teve uma chance,
mas foi superado por Waterman, goleiro transformado em herói por impedir
que um dos envolvidos na morte de Euclides da Cunha saísse vitorioso.
- Dinorah aproveitou entao um bom passe de Lulu e avançou para o goal
adversario. As archibancadas emocionaram-se e gritaram de toda a parte,
tal era a sympathia do Fluminense: "Waterman! Waterman!". Elle já estava
no seu posto, sereno, fleugmático. Dinorah aproximou-se e shootou
rasteiro: - Waterman pegou a bola, sob uma estrepitosa salva de palmas,
bateu-a duas vezes e passou-a - descreveu o jornal.
Enquanto Dilermando se recuperava dos tiros e enfrentava a fúria
popular, Dinorah, também criticado, era vice-campeão carioca com o
Botafogo. O futebol era presença sólida em sua vida. No ano seguinte,
ele seguiria jogando. Mas começaria a perceber algo diferente. Ao
contrário do que disseram os médicos, o tiro de Euclides da Cunha
causara, sim, efeitos no corpo do zagueiro. Dinorah estava perdendo
parte dos movimentos.
Motivo para largar os campos? Não tão cedo. Em 1910, ele participou
ativamente do título estadual. Cada vez mais debilitado, fez gols nos
massacres de 9 a 1 sobre o Riachuelo, em 5 de junho, e de 11 a 0 contra o
Hadock Lobo, em 2 de outubro. Só não participou de uma partida na
campanha de nove vitórias em dez jogos.
Veio 1911, e o corpo já não obedecia mais o jogador. Em 14 de maio, ele
fez seu último jogo oficial, na vitória de 3 a 0 sobre o Rio Cricket.
Também foi a campo em 23 de julho, em derrota de 4 a 3 para o
Americano-SP em amistoso. Impossibilitado de correr, atuou como goleiro.
E nunca mais vestiu alvinegro. Menos de dois anos depois da Tragédia da
Piedade, o tiro de Euclides da Cunha encerrava a carreira de Dinorah.
Mas o pior ainda estava por vir...
A miséria, a loucura e a morte
Os acontecimentos posteriores tornaram ainda mais absurda a Tragédia da
Piedade. Em 1911, Dilermando e Anna se casaram. Solon, o
filho-testemunha da traição, se rebelou com a família. Virou seringueiro
no Acre. Foi assassinado por grileiros em 1916. No mesmo ano, Euclides
Filho, o Quidinho, resolveu vingar o pai e tentou abater Dilermando.
Incrível: foi morto por ele, repetindo a sina do escritor.
Jornal "Correio da Manhã" noticia o suicídio de
Dinorah em 1921 (Foto: Reprodução)
Dinorah em 1921 (Foto: Reprodução)
Enquanto isso, Dinorah despencava rumo à morte. O ex-zagueiro não
conseguiu superar seus dramas. A invalidez impediu que jogasse futebol, e
a antipatia da sociedade tornou a vida militar inviável. Ele ficou sem
norte. Caiu em uma vida de bebedeiras. Contraiu sífilis. E passou a ter
distúrbios mentais.
Em 1913, acompanhando o irmão em Minas Gerais, Dinorah foi parar em um
hospício pela primeira vez. Foi nessa época que a bala disparada por
Euclides da Cunha finalmente foi retirada de seu corpo.
Um ano depois, ele voltou ao Rio de Janeiro, e a situação só piorou.
Fora de si, ele vagava pelas ruas. Dava pena. Em julho, entrou em um
carro, uma espécie de táxi, e circulou pela cidade durante duas horas.
Pediu que o motorista parasse na Praia de Botafogo, perto do clube. Com
metade do corpo imóvel, se jogou na água. A tentativa de suicídio foi
impedida por uma testemunha da cena.
- Paralytico de um lado, sem poder nadar, ia perecer, quando em seu
auxílio correu o sr. Joaquim Alves Ferreira, empregado na Fundição
Americana, que o salvou - descreveu o jornal "A Noite" em 6 de julho de
1914.
O drama de Dinorah comoveu parte da sociedade. Jornais pediram ajuda a
ele. O Fluminense se solidarizou e sugeriu um jogo festivo. Em vão. O
ex-zagueiro voltou a viver nas ruas. Companheiros dos tempos de América
faziam o possível para que, escondido, ele passasse as noites sob as
arquibancadas do estádio. Colegas da época de Botafogo abriam uma sala
para ele no clube. Mas Dinorah não tinha cura: louco, paralítico e
miserável, ele rumava para seu fim.
Em 1916, de volta a Porto Alegre, o campeão de seis anos antes teve
outra tentativa de suicídio. Na Praça da Alfândega, no Centro da cidade,
deu um tiro no peito. Novamente, não conseguiu dar fim à vida. Nos anos
seguintes, reencontrou um pouco de paz ao voltar a viver com o irmão em
Bagé, no interior gaúcho. Lá, segundo as memórias de Judith, filha de
Anna e Dilermando, até tentou ensinar Lulu, seu sobrinho, a jogar
futebol. Era uma cena comovente: de muletas, quase imóvel, brincava com
uma bola - o objeto que tanto amava.
Mas os sinais de recuperação eram falsa esperança. Em 1921, novamente
em Porto Alegre, a tragédia do ex-zagueiro encontrou seu ponto final.
Era domingo. Por volta de 17h, depois de conversar com conhecidos na
Rua Barros Cassal, Dinorah rumou para o Rio Guaíba. E repetiu o que
fizera no Rio de Janeiro. Na altura da Voluntários da Pátria, no
trapiche da Companhia Becker, caiu para a morte. Foi visto por um
policial, que logo iniciou a tentativa de encontrá-lo. Em vão. O corpo
só foi achado uma hora depois, já sem vida.
"Campeão desde 1910", como canta o hino
Foram muitas as vítimas daquela manhã de domingo em 1909. Euclides foi
para matar e acabou morto. Dois de seus filhos, Solon e Quidinho, não
suportaram os acontecimentos e, direta ou indiretamente, também morreram
por causa daquela tragédia. Dilermando teve longa vida, casou-se duas
vezes, colecionou filhos, mas sempre conviveu com a imagem de vilão, de
assassino - até falecer em 1951, vítima de colapso cardíaco. Anna de
Assis também tocou sua vida, conseguiu viver com o homem que amava, mas
sempre com a fama de adúltera tatuada em sua testa. Também morreu em
1951, de câncer.
Mas a maior vítima talvez tenha sido justamente a mais involuntária.
Dinorah não traiu ninguém, não tentou matar ninguém. Por crimes e
pecados de outros, pagou com o corpo, com a mente e com a vida. Pior:
corre o risco de cair no esquecimento, mesmo tendo conquistado, com uma
bala cravada na espinha, um título tão representativo para o Botafogo - o
clube "campeão desde 1910", como se orgulha a primeira estrofe de seu
hino.