Seedorf, o homem que quer mudar o jogo
Craque do Botafogo se
vê como missionário de um mundo melhor
Arnaldo Bloch
Seedorf não bebe nem fuma e sua balada
é andar de bicicleta Marcelo Carnaval / O Globo
RIO — Nascido no Suriname, terra de
seus avós e de seus pais, educado e revelado na Holanda, onde se radicou, com
passagens duradouras pela Espanha e pela Itália, Clarence Seedorf, 36 anos,
parou no Brasil, ao menos por ora. Seu pai e sua mãe trabalhavam 18 horas por
dia para dar um futuro melhor aos filhos, o que poderia explicar a obstinação
do craque pelo trabalho, não fosse ele um cultor mais das ideias do que dos
números, que vê no esporte um terreno para refleti-las na vida.
Protocolarmente, o atual ídolo do
Botafogo e um de seus líderes vê-se como cidadão do mundo, homem internacional,
cuja vida é condicionada pelos seus compromissos. Mas, feita a ressalva,
conclui por garantir que no sangue, é terra natal dos antepassados que pulsa
mais forte.
— Todo lugar é minha casa. Fico bem
onde estiver morando, e me acostumei a hotéis. Mas é claro que cada um tem as
suas origens, e a minha eu não esqueço, porque tenho família e tenho história.
Tenho meu tambor e minha bateria, lembro das canções de meu pai, sou consciente
do sofrimento de gerações. Mas a experiência multicultural de viver em vários
lugares do mundo fez muito bem para a minha cabeça, que ficou mais aberta e
diversificada.
Português na cabeça
Dono de sorriso franco mas de trato
reservado, formal até, Seedorf chega ao restaurante do hotel Fasano, em
Ipanema, num carro prateado e escolhe a sua mesa de sempre, num canto do salão.
Criou apreço pelo lugar no qual passou as primeiras semanas desde que chegou à
cidade, quando o apartamento no Leblon era reformado. Ao garçom, pede água.
Recusa o couvert e solicita, educadamente, que o deixem concentrar-se por 45
minutos num jogo de um tempo só: a entrevista.
Mais preocupado com os conceitos do que
com os detalhes, não gosta de falar muito da família (para não despertar
“curiosidades que não importam”) e escolhe as palavras com calma. Empenhado em
desenvolver seu português carregado de um sotaque indefinível, e já bem
fluente, ele não recorre, jamais, aos outros idiomas que fala.
— Atualmente, minha cabeça só funciona
em português. Nem adianta eu tentar, as palavras não vêm em outra língua, o que
é ótimo.
A importância de
cantar
Avesso a vícios que não sejam os de
misturar frutas no liquidificador e tomar muita água, gosta de comida japonesa
e italiana, come feijão com arroz e cozinha receitas do Suriname, parecidas com
muita coisa que viu na Bahia. Garante que não bebe nem fuma. Mas gosta de rock,
reggae, clássicos e algum samba e tem o hábito de cantar, desde que não seja
num karaokê (“pois tira a espontaneidade”) ou desde que o estilo não seja o que
ele define, genericamente, como batida techno e assemelhados.
— Cantar é muito importante. Limpa a
alma. Tudo na vida é sempre uma escolha. Nunca usei drogas. Desde cedo, em
Amsterdam, uma cidade complicada, escolhi dizer ‘não’ e as pessoas nem me ofereciam
por saber disso. Não perdi meus amigos por me recusar a participar desse
aspecto de suas vidas. Eu os respeitava e eles me respeitavam. Mas alguns
acabaram tendo as vidas abreviadas.
Caxias assumido, Seedorf dedica a maior
parte do tempo aos treinos, à forma física e a diversos assuntos do Botafogo,
dentro e fora de campo. Suas baladas, para usar a expressão tão querida por
alguns ídolos, limitam-se, aparentemente, a caminhar, quando as coisas estão
mais tranquilas, no calçadão do eixo Ipanema-Leblon, ou a participar de
reuniões de família e de amigos. Há poucos meses vivendo no país, apesar das
constantes vindas nos últimos 12 anos, observa a cena local com a cautela de
quem cresceu tendo consciência da luta de um povo pela liberdade.
— Meu avô era filho de escravos e o
Brasil é um dos países que, infelizmente, conheceram a escravidão. Seria
mentira dizer que não existe racismo aqui. São necessárias muitas gerações para
se chegar a um nível diferente de convivência entre povos de várias origens e cores.
Mas ainda não percebi claramente como isto ocorre na cidade, pois estou só há
cinco meses vivendo no país. Ainda estou construindo minha vida e minha rotina
aqui.
Seus ícones não são marcas de celular,
popstars ou líderes de revoluções sangrentas, e sim nomes e sistemas mais
identificados com transformações de mentalidade como Buda, Gandhi, Dalai Lama,
Nelson Mandela, Osho. Admira o período de Bill Clinton à frente do governo
americano e considera a eleição de Obama um fato inspirador.
— Vou acumulando frases, ideias e
reflexões que recolho do pensamento e da vida de pessoas que mudaram o mundo e
deixaram coisas grandes. Eles ajudaram a formar meu caráter e a despertar
intuições que já estavam em mim. Tornei-me um idealista. O que não é sempre uma
coisa fácil hoje em dia. Mas, apesar das dificuldades, não quero deixar de crer
no bem, professar o bem e viver de maneira positiva. O foco hoje está muito no
que é negativo. Por exemplo, há doze anos venho ao Rio. Para uma cidade de 6
milhões de pessoas com tantos contrastes, nunca achei a violência aqui tão
grande como se diz por aí, ainda mais em comparação com vários lugares do mundo
onde o perigo é generalizado.
Casado com a brasileira Luviana, que
conheceu em Madri, há 14 anos, ele já tinha o país como uma dessas referências
emancipatórias desde a infância, aficionado que era pela seleção a da geração
de Zico, como a maioria do povo do Suriname. Muito pequeno para a Copa de 1982,
o menino Seedorf chorou em 1986 com a eliminação para a França nas quartas de
final, um dos fatos perturbadores de sua infância.
— Meu pai teve que me levar para fora
de casa para me acalmar. A bola na trave do Julio Cesar foi um drama.
O choro aos 12 anos faz pensar em cena
recente, estampada nas páginas dos jornais, nos sites e na televisão: o
veterano de 36 anos que chorou ao deixar o campo contundido, emocionando a
opinião pública ao dizer que o pranto era pelo tempo que teria que ficar
afastado do time num momento de recuperação. A ovação quase unânime do choro de
Seedorf é interessante se compararmos à chacota de que é motivo o Botafogo
desde a comoção coletiva do plantel que perdeu para o Flamengo a final de Taça
Guanabara de 2008. Qual o critério para se avaliar a qualidade ética de um
chororô? Seedorf, de cara fechada como faz cada vez que seus princípios são
contrariados, arrisca o diagnóstico.
— Não me toca essa história de chororô.
Na verdade, não tenho nenhuma simpatia por ela. É muita falta de respeito.
Choro é sinal de força. Quem chora tem coragem, e um atleta deve descarregar
sua dor. O Botafogo foi um dos grandes produtores de talentos de uma geração de
seleções que ganhou muitos títulos mundiais. É um patrimônio brasileiro
importante e não merece ser tratado dessa maneira e nem tratar mal a si
próprio. Os jornalistas botafoguenses não são nada bonzinhos com o time. Um
Botafogo com autoestima baixa não é bom para o Brasil. Na minha vida, perdi
mais do que ganhei. Com todo mundo é assim. Mas a vitória, mesmo, que fica, é a
da constante superação e dos valores que passamos, independentemente dos
números.
Construção de
exemplos
Partidário da ideia de que o futebol é estruturante de comportamentos
sociais e multiplicador de princípios éticos e morais, ele enxerga um viés
negativo na maneira como muitas vezes é espelhado pelos responsáveis por sua
gestão e também pelas mídias, que estariam, segundo ele, mais concentradas na
degradação das personalidades do que na construção de exemplos. Confrontado com
a possibilidade de o problema em vários lugares do mundo fez muito bem para a
minha cabeça, que ficou mais aberta e diversificada.
Português na cabeça
Dono de sorriso franco mas de trato
reservado, formal até, Seedorf chega ao restaurante do hotel Fasano, em
Ipanema, num carro prateado e escolhe a sua mesa de sempre, num canto do salão.
Criou apreço pelo lugar no qual passou as primeiras semanas desde que chegou à
cidade, quando o apartamento no Leblon era reformado. Ao garçom, pede água.
Recusa o couvert e solicita, educadamente, que o deixem concentrar-se por 45
minutos num jogo de um tempo só: a entrevista.
Mais preocupado com os conceitos do que
com os detalhes, não gosta de falar muito da família (para não despertar
“curiosidades que não importam”) e escolhe as palavras com calma. Empenhado em
desenvolver seu português carregado de um sotaque indefinível, e já bem
fluente, ele não recorre, jamais, aos outros idiomas que fala.
— Atualmente, minha cabeça só funciona
em português. Nem adianta eu tentar, as palavras não vêm em outra língua, o que
é ótimo.
A importância de
cantar
Avesso a vícios que não sejam os de
misturar frutas no liquidificador e tomar muita água, gosta de comida japonesa
e italiana, come feijão com arroz e cozinha receitas do Suriname, parecidas com
muita coisa que viu na Bahia. Garante que não bebe nem fuma. Mas gosta de rock,
reggae, clássicos e algum samba e tem o hábito de cantar, desde que não seja
num karaokê (“pois tira a espontaneidade”) ou desde que o estilo não seja o que
ele define, genericamente, como batida techno e assemelhados.
— Cantar é muito importante. Limpa a
alma. Tudo na vida é sempre uma escolha. Nunca usei drogas. Desde cedo, em
Amsterdam, uma cidade complicada, escolhi dizer ‘não’ e as pessoas nem me
ofereciam por saber disso. Não perdi meus amigos por me recusar a participar
desse aspecto de suas vidas. Eu os respeitava e eles me respeitavam. Mas alguns
acabaram tendo as vidas abreviadas.
Caxias assumido, Seedorf dedica a maior
parte do tempo aos treinos, à forma física e a diversos assuntos do Botafogo,
dentro e fora de campo. Suas baladas, para usar a expressão tão querida por
alguns ídolos, limitam-se, aparentemente, a caminhar, quando as coisas estão
mais tranquilas, no calçadão do eixo Ipanema-Leblon, ou a participar de
reuniões de família e de amigos. Há poucos meses vivendo no país, apesar das
constantes vindas nos últimos 12 anos, observa a cena local com a cautela de
quem cresceu tendo consciência da luta de um povo pela liberdade.
— Meu avô era filho de escravos e o
Brasil é um dos países que, infelizmente, conheceram a escravidão. Seria
mentira dizer que não existe racismo aqui. São necessárias muitas gerações para
se chegar a um nível diferente de convivência entre povos de várias origens e
cores. Mas ainda não percebi claramente como isto ocorre na cidade, pois estou
só há cinco meses vivendo no país. Ainda estou construindo minha vida e minha
rotina aqui.
estar no futebol atual, ele usa como
paradigma a postura geral frente aos esportes olímpicos.
— As Olimpíadas são sempre mostradas
como um encontro que eleva as pessoas, e o mundo inteiro olha para a televisão
com esse espírito. No futebol os valores mais justos que influenciam o comportamento
das pessoas de dentro para fora dos estádios não são suficientemente
enfatizados. Talvez por que seja um esporte tão popular. Mas deveria ser o
oposto. O Adriano que conheci no exterior, por exemplo, era uma pessoa
exemplar, de grande coração. Hoje sua figura se identifica com os minutos de TV
que mostram seu drama. Isso não ajuda muito.
A história é agora
Visado pelos holandeses para assumir
uma espécie de representação da seleção do seu país para a próxima Copa, e por
uma corrente da torcida alvinegra como um possível redentor (e, talvez, futuro
dirigente) dos anseios botafoguenses, ele admite que tem uma missão, mas uma
missão para o mundo, ainda inespecífica em termos de planos e projetos a curto
prazo.
— O futebol me dá a possibilidade de
ajudar o mundo a melhorar. Quero dar minha parte. É algo que vou descobrir à
medida que vou fazendo e que já está em mim desde pequeno. Neste minuto estou
preocupado em fazer o Botafogo chegar em quinto no Brasileiro, seu melhor
resultado em 17 anos. Mas estou torcendo pelo Corínthians no mundial. Não sou
do tipo de torcer contra ninguém. Na final, pelo Milan, fui aplaudido pela
torcida do Barcelona tendo jogado pelo Real Madrid. É esse espírito que levo
para a vida, o da construção, não o da destruição, esteja eu no Botafogo ou em
outro lugar. Quero para o Botafogo o que quero para o futebol brasileiro. Quero
para mim o que quero para todos.
É preciso parar de só olhar para o
passado. O menino que quer jogar o jogo da vida tem que se inspirar em quem faz
a história hoje, respeitando o passado, mas vivendo o presente. Ele não pode
ficar com os olhos pregados só no que aconteceu há 40 anos. Uma divisão de base
vitoriosa pode servir de exemplo tanto quanto um grande ídolo internacional.
Todos fazem, sempre, história.