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Família teve ajuda do presidente do Ibope, que garantiu uma nova casa longe da área de risco

 Após um ano, a vida renasce da tragédia

Moradora de Teresópolis que perdeu 4 filhos na tragédia da Serra será mãe novamente

O Globo

 

RIO - Num dos três quartos do apartamento de Verônica Dutra de Paiva e Fernando Pfister, em Teresópolis, o casal mostra as lembrancinhas que fizeram para distribuir em março, quando o bebê nascer. Mas as luzes vindas da árvore de Natal, montada ao lado da janela que dá vista para o Lago Comary, iluminam, num porta-retrato, os rostinhos que não saem da lembrança dos dois. Fernando e Verônica perderam na tragédia absolutamente tudo o que tinham. Na madrugada de 12 de janeiro do ano passado, a água levou seus quatro filhos, sua casa, seus móveis, suas fotografias, sua história.

O casal morava em Santa Rita, um dos distritos de Teresópolis mais castigados pela enxurrada. Tanto moradias de baixa renda quanto condomínios de luxo foram atingidos pelo transbordamento do rio que corta a localidade. Além disso, deslizamentos de terra atingiram diversas casas e interromperam, por dias seguidos, o fornecimento de energia, as comunicações e as vias de acesso.

Fernando, que trabalha como vigia noturno, não estava com a mulher naquela madrugada. Como sempre acontecia, ela estava sozinha com Hyago, de 11 anos; Hiasmym, de 9; Caroline, de 6; e Cauã, de apenas 1 ano, na casa em que moravam, às margens de um riacho. No momento da tragédia, Verônica ainda tomava conta do primo José Victor, de 9 anos, filho de uma tia que morava no mesmo bairro — e que também perdeu tudo.

Ela conta que as meninas, que tinham ido ao banheiro, foram as primeiras a serem arrastadas pela correnteza. Depois de conseguir pôr os dois meninos mais velhos na laje, Verônica percebeu que o bebê havia morrido em seus braços, em consequência da queda de uma parede.

— Tirei a calça de moletom que usava e amarrei o corpinho dele ao meu. Mas a força da água foi maior. Fui encontrada dentro do rio, a dois quilômetros de casa, sozinha, presa a um bambuzal. Naquelas horas, eu ficava imaginando por que não morri. A ponto de sentir inveja de quem se foi — lembra Verônica.

Dois filhos na lista de desaparecidos das chuvas

Seu périplo de dor estava só começando. Depois de ser resgatada, soube que os dois meninos que ela deixara na laje desapareceram junto com a casa. Ao lado do marido, saiu em busca dos filhos, primeiro em Santa Rita, depois na delegacia, que foi transformada em necrotério, devido ao grande número de corpos. Encontrou os do sobrinho, do filho Hyago e da filha Carol. Hiasmym e o pequeno Cauã nunca foram localizados.

Ainda sob o impacto da tragédia, o casal foi vítima de aproveitadores. Fernando conta que alguém que se apresentou como vereador da cidade retirou em nome deles, junto à prefeitura, cinco cestas básicas que nunca chegaram à família. Verônica se lembra com tristeza de outro episódio que os deixou marcados:

— Tínhamos espalhado cartazes com as fotos das crianças que estavam desaparecidas. Um pastor, vizinho nosso, declarou num programa de rádio que vira nossa Hiasmym ser resgatada por um helicóptero. Percorremos todos os hospitais da região, e até mesmo do Rio, em busca da menina. Chegamos a preparar uma festa para ela, que faria aniversário no dia 13 de janeiro. Mas depois ele disse que era mentira, e que só falou aquilo para nos confortar. Veja você. Acabou matando nossa filha duas vezes.

Foi em meio a essa dor tamanha que a história do casal começou a mudar. Depois de uma entrevista num programa de rádio, para contar sua história e pedir informações sobre os filhos desaparecidos, os dois acabaram sendo procurados pelo empresário Carlos Augusto Montenegro.

— Ele nos ligou dizendo que queria nos dar uma casa. Depois de tudo o que passamos, chegamos a pensar que fosse trote — conta Verônica.

Mas não era. Sensibilizado com a tragédia, o presidente do Ibope traçou uma nova vida para quatro famílias (ao todo, 18 pessoas) vítimas das chuvas em Teresópolis e Nova Friburgo. E garantiu a elas casas longe das áreas de risco.

Montenegro conta que chegou às famílias 20 dias depois da catástrofe. De início, a ideia era auxiliar uma em Friburgo e outra em Teresópolis. Mas, segundo ele, um caso foi puxando o outro, e esse número acabou dobrando.

Já chorei muito com cada um deles. Ao ver a destruição pela TV, tive a certeza de que era hora de ajudar. Mas não queria fazer como das outras vezes, com alimentos, roupas e água. Era uma tragédia de proporção ainda não vista no país.

“Parece que eles ainda estão aqui”

A única condição exigida por Montenegro foi o anonimato, cumprido à risca pelas famílias. O gesto de solidariedade foi revelado por Zuenir Ventura, em sua coluna no GLOBO (“De mal e benfeitores”), em 9 de novembro passado, ao elogiar a atitude do empresário. Para Verônica e Fernando, a ajuda do empresário foi vital. Como ela havia feito laqueadura e ele, vasectomia, o empresário custeou todo o procedimento de inseminação artificial que resultou na gravidez de Verônica.

— Penso que Deus achou que o sofrimento foi muito grande. É claro que a gente não é feliz da mesma maneira. Parece que eles (os filhos) ainda estão aqui. Dá uma pena enorme pensar que não sobreviveram. Mas é um consolo saber que, ao contrário da maioria das pessoas que passaram o que nós passamos, conseguimos recomeçar. E hoje temos um lugar para morar com a nossa filha — diz Verônica.

No novo lar, eles redistribuíram boa parte do que ganharam. Enquanto preparam o enxoval do bebê, fazem planos para o futuro. Ela fala em concluir os estudos, interrompidos no ensino fundamental. Fernando, que vai passar as próximas semanas em Rio das Ostras, por causa do trabalho, diz que pensa em abrir um pequeno negócio, para poder ficar mais perto da família.

— O passado é muito doido, então a gente procura pensar no futuro. Depois de tudo isso, passamos a dar valor a pequenas coisas que antes passavam despercebidas. Aprendemos, sobretudo, a ver que a gente não é nada — afirma Verônica.

O casal decidiu que a menina vai se chamar Ana Luíza, em homenagem à mulher do empresário que lhes estendeu a mão. À espera do parto, eles reconhecem que o nascimento da filha é mais que um recomeço:

— Não somos nós que estamos dando a vida a ela. É ela quem está nos fazendo nascer de novo — diz Verônica.
Colaborou Marcelo Remígio