O capitalismo entra em campo
Com mentalidade empresarial e empenho para superar velhos vícios administrativos que tanto prejudicam os clubes, uma nova leva de dirigentes esportivos age para revolucionar o futebol carioca
VEJA RIO
por Felipe Carneiro | 06 de Março de 2013
A figura do dirigente esportivo
nacional sempre foi vista com desconfiança. Não sem razão, o próprio
termo cartola, usado para se referir à classe, carrega uma carga
pejorativa, associada a irresponsabilidade, incompetência e amadorismo
além de, em muitos casos, desonestidade. No entanto, fora dos gramados
foi feita uma substituição que reacende a esperança dos torcedores
cariocas. Em um movimento que se consolida aos poucos, uma nova safra de
dirigentes ganha poder nos clubes do Rio. São pessoas com passagem por
grandes empresas que se propõem a verter para o mundo da bola as lições
que aprenderam no escritório de algumas das companhias mais poderosas do
país. É natural, então, que termos característicos do linguajar
corporativo, como core business, CEO, maximização de receitas e fundo de
investimento em direito creditório, estejam incorporados à rotina de
Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco.
Entre o quarteto, o exemplo mais
destacado vem da Gávea. No fim de 2012, os sócios rubro-negros elegeram
a chapa encabeçada pelo economista Eduardo Bandeira de Mello, diretor
do BNDES, há 25 anos na instituição. Do grupo fazem parte nomes
conhecidos do mundo dos negócios, como é o caso de Rodolfo Landim, que
foi sócio de Eike Batista, e do ex-presidente do Banco Central Carlos
Langoni. Cabe a eles a missão de recuperar o clube mais popular do país,
avariado por dívidas acima de 450 milhões de reais. Com dois meses no
poder, a equipe já conseguiu ter uma dimensão do problema. "Descobrimos
que o orçamento era uma ficção. Decidia-se o que fazer com o dinheiro no
instante em que ele entrava no caixa, de improviso", conta um assustado
Landim, vice-presidente de planejamento.
Se os executivos recém-chegados conseguirem implantar as práticas capitalistas que conhecem tão bem, já terá sido uma enorme contribuição a um meio cheio de vícios, seja por inércia, seja por falta de honradez de seus comandantes. Neste começo de gestão no Flamengo, algumas medidas já foram implementadas com o objetivo de profissionalizar a agremiação (veja o quadro ao lado). Foram criadas as diretorias de recursos humanos, marketing e assuntos jurídicos, para as quais gente com qualificação no mercado foi contratada. Tal qual numa empresa, os dirigentes traçaram metas para os funcionários, com bônus caso elas sejam alcançadas. Outra providência emergencial foi a realização de uma auditoria a fim de obter uma radiografia financeira do clube, prerrogativa fundamental para uma governança prudente. A promessa é divulgá-la a cada três meses.
Os ventos de mudança que sopram na Gávea atingem também São Januário. Para dar um basta na situação caótica em que se encontrava o Vasco da Gama, o presidente Roberto Dinamite contratou o administrador gaúcho Cristiano Koehler, que vem sendo chamado lá dentro de CEO (chief executive officer), sigla em inglês para designar o principal executivo de uma empresa. Ele chegou com plenos poderes para reorganizar o clube, que acaba de perder seu patrocínio no futebol. Sob sua alçada estão cinco diretorias recém-criadas: jurídica, marketing, futebol, administração e planejamento e finanças.
Pode parecer absurdo, mas estes primeiros meses estão sendo usados para estabelecer rotinas que são básicas em qualquer padaria ou banca de jornal: sistematizar o controle do caixa, tabular as dívidas e cortar desperdícios. Koehler ficou estupefato ao tomar conhecimento de que o clube não dispunha de uma equipe própria de advogados, apesar dos mais de 400 milhões em dívidas, que pipocam nos tribunais. A cada jornada surgem mais percalços, e é preciso ter fôlego de atleta para encará-los. "Fico ao mesmo tempo no Vasco do passado, tratando da dívida, no do presente, buscando tornar o time competitivo e o clube superavitário, e no do futuro, tentando levar essa máquina a outro patamar de organização, tecnologia e gestão", resume o administrador ao dar a dimensão de seu desafio.
Com o país saudável economicamente e às vésperas de sediar a Copa das Confederações e a Copa do Mundo, o negócio futebol exibe por aqui números crescentes, que saltam aos olhos de qualquer financista. Segundo estimativa do consultor Amir Somoggi, especializado no assunto, o faturamento dos dez maiores clubes brasileiros nesta temporada deve ficar próximo de 3 bilhões de reais, quase quatro vezes mais que o verificado há uma década. A fase de bonança, no entanto, de nada serviu para equilibrar as contas das agremiações, cada vez mais no vermelho. De 2003 a 2011, esses mesmos clubes que viram sua receita crescer como nunca, paradoxalmente, acumularam um déficit de 1,1 bilhão de reais.
No
ranking dos maiores devedores despontam justamente Botafogo, Flamengo,
Fluminense e Vasco entre os cinco primeiros. Para virar esse jogo, a
nova leva de executivos traz a esperança de uma gestão mais responsável e
menos imediatista, subvertendo a máxima de que administrar um clube de
futebol é um exercício diário de apagar incêndio. "Dívidas, toda empresa
tem, não são o problema em si. O problema é que aqui na Gávea elas
foram contraídas a juros muito altos, de curto prazo. Isso gera um custo
elevadíssimo e acarreta penhoras, inviabilizando o clube", lamenta o
presidente rubro-negro, Bandeira de Mello. "Em no máximo um ano, teremos
tudo dentro de um cronograma de pagamento, sem surpresas como as que
estão aparecendo todos os dias, e a máquina funcionará como uma empresa
normal."
Além das armadilhas de ordem administrativa, outra arapuca está no caminho dos cartolas. Quem faz o alerta é o economista catalão Ferran Soriano, autor do livro A Bola Não Entra por Acaso, em que relata sua experiência como dirigente do Barcelona de 2003 a 2008, quando o clube iniciou seu grande salto financeiro e esportivo. "A gestão de um clube não é como a de uma empresa, pois os objetivos são outros. Mas muitas práticas empresariais são fundamentais, pois têm por meta garantir a eficiência dos processos e do uso do dinheiro", destaca Soriano, atualmente CEO do Manchester City, time inglês que é uma das potências mundiais.
É verdade. Uma companhia exemplar é aquela que dá
lucro. Em um clube, a equação envolve outro vetor, que são os títulos
conquistados. Pouco adianta operar no positivo se no campo as vitórias
não acontecem. Os clubes alemães são imbatíveis em termos de equilíbrio
contábil, mas o modelo sempre citado pelos cartolas cariocas é o do
Barcelona, que tem uma dívida de 300 milhões de euros mas fatura quase
500 milhões por ano. E, argumento irresistível, ganhou dois títulos
mundiais nos últimos cinco anos. "Se o clube fosse uma empresa privada,
os esportes olímpicos simplesmente seriam fechados para dar eficiência à
operação, e mesmo o futebol teria um corte drástico de custos para
poder se reerguer depois. Mas não podemos agir assim", afirma o
presidente do Botafogo, Maurício Assumpção, empenhado em modernizar a
gestão do Glorioso.
Loja do Vasco em São Januário: o licenciamento de produtos, hoje feito de forma tímida, pode se tornar uma poderosa fonte de receita
Para manterem o equilíbrio entre despesa e arrecadação sem comprometer o investimento no futebol, os quatro cariocas seguem o mantra da diversificação de receitas. Enquanto nos principais clubes ingleses e espanhóis há um equilíbrio entre as três grandes fontes de renda cota de TV, bilheteria e área comercial , aqui o acordo com a televisão corresponde à maior fatia, chegando à metade do faturamento total do Flamengo no ano passado (veja o quadro acima). Entre as medidas para rechear o cofre, o Fluminense lançou o projeto sócio-torcedor, que já conta com mais de 7 000 adeptos.
Na Gávea, os dirigentes empacotam ainda
para este semestre um programa semelhante. Pesa contra a dupla Fla-Flu a
falta de um estádio, patrimônio que virou uma valiosa fonte de
dinheiro, como mostram os milionários clubes europeus e a não menos
abastada Liga de Basquete Americana (NBA).
Apesar de estar ainda longe
de todo o seu potencial de exploração, o Botafogo fatura mais de 15
milhões de reais por ano com o Engenhão, entre publicidade, bilheteria,
praça de alimentação, aluguel de camarotes e realização de eventos, como
o show de Paul McCartney em 2011.
De olho nesse filão, Cristiano
Koehler pretende derrubar o complexo de São Januário para construir um
estádio moderno no lugar. O pontapé inicial para uma nova era está dado.
"É um alívio ver que os grandes do Rio estão finalmente no caminho
certo", diz Fernando Gonçalves, sócio-diretor da Traffic, gigante do
marketing esportivo no Brasil. Um caso raro em que os torcedores de
Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo têm motivo para comemorar juntos.
Cortar Custos sem mexer na qualidade
O que está sendo feito na Gávea, nas Laranjeiras, em General Severiano e São Januário dentro do choque de gestão prometido
Flamengo
Em
pouco tempo, o grupo que assumiu a Gávea já fez uma reformulação
administrativa do clube. Entre as novidades mais relevantes está a
criação de uma vice-presidência específica para a negociação da dívida.
Em nome da profissionalização, foram contratados diretores remunerados
para as áreas de RH, marketing e jurídica. Tal qual numa empresa, os
dirigentes estabeleceram metas para os funcionários, com remuneração
variável conforme os objetivos alcançados. O presidente Eduardo Bandeira
de Mello acena com a publicação de uma auditoria externa a cada três
meses. Como a ordem é apertar o cinto, houve um corte de 20% na folha
salarial do time, o que acarretou a perda do maior ídolo do Flamengo da
temporada passada, o atacante Vágner Love, que retornou ao futebol
russo.
Fluminense
Sócio
de um escritório de advocacia, o presidente Peter Siemsen, no comando
do tricolor desde o fim de 2010, tenta dar um choque de gestão nas
Laranjeiras. Uma das medidas tomadas no seu mandato foi a separação
contábil do departamento de futebol da área dos esportes olímpicos e da
social. Eles pôs em curso o programa sócio-torcedor, que visa a
fidelizar o aficionado que está sempre presente nas arquibancadas e
explorar o potencial financeiro dessa paixão. Outra novidade foi a
criação de um planejamento estratégico quinquenal, cujo objetivo é fugir
do imediatismo que caracteriza as administrações dos clubes de futebol
no país de maneira geral.
Vasco
O
grande reforço anunciado neste começo de ano vai atuar nos bastidores.
Contratado para exercer no clube a função de CEO (chief executive
officer, o mais alto cargo executivo dentro de uma corporação), o
administrador gaúcho Cristiano Koehler adotou como primeira medida a
formação de uma equipe profissional para trabalhar em cinco áreas
nevrálgicas de São Januário: jurídica, marketing, futebol, administração
e planejamento e finanças. Sem dinheiro em caixa, ele planeja a criação
de um fundo de investimento para a contratação de jogadores e a
manutenção de jovens talentos das divisões de base.
Botafogo
Para
evitar a penhora de receitas, um dos grandes tormentos dos clubes
cariocas, a gestão atual deu origem à empresa Botafogo S.A., que cuida
fundamentalmente da administração do Estádio João Havelange, o Engenhão.
Em busca do equilíbrio financeiro, o presidente Maurício Assumpção
cortou custos, sem, no entanto, mexer na folha de pagamento do futebol. À
frente do Glorioso desde 2009, ele determinou que a renegociação da
dívida, uma das maiores entre as agremiações brasileiras, fosse feita
credor a credor. Implementou reformas na sede de General Severiano e no
próprio complexo esportivo do Engenho de Dentro, por meio de parcerias, e
criou uma associação encarregada de captar patrocinadores para os
esportes olímpicos.