Personagens contam como clubes pagam para outros times arrancarem pontos de adversários. Mas divergem quando o dinheiro é para algum rival
Hotel cinco estrelas de uma capital brasileira na véspera da penúltima rodada do Campeonato Brasileiro de 2009. Abre-se a porta do elevador. De chinelos e com uniforme de concentração de um clube da Série A, um jogador caminha até o saguão. Vê o aceno de um cidadão, até aquele momento, estranho.
Os dois se cumprimentam disfarçadamente e caminham até o bar do lobby. Em vez de cerveja ou refrigerante pedem apenas privacidade. Ah, e um café bem quente. Sem açúcar. O papo é direto, sem rodeios.
- Onde está? - pergunta o jogador.
- Aqui - informa o interlocutor, abrindo o zíper de uma pequena mala de ombro.
Mala branca: personagens buscam discrição para oferecer estímulo financeiro a outros clubes
O recheio da mala encontra o olhar de aprovação. Cinco minutos depois o jogador volta para o quarto de mãos vazias e cabeça cheia. Precisa informar aos companheiros que um empate no dia seguinte passou a valer muito a pena. A valer, precisamente, cerca de R$ 10 mil para cada um. Um senhor presente para um elenco de um time que patina na faixa insossa do Brasileirão - aquela dos que não brigam por nada (título, Libertadores) nem contra nada (rebaixamento). O acordo foi selado. A mala branca chegou.
O assunto é um antigo tabu no futebol brasileiro - muito se fala nos bastidores, pouco na superfície. O "homem da mala" está longe de ser um personagem de ficção. Alguns dirigentes negam, outros desconversam - quase todos olham de lado quando perguntados sobre ele. Os jogadores são menos evasivos.
Luan, do Palmeiras, diz que a mala branca é uma realidade, e muitas vezes a negociação se dá entre os jogadores. O zagueiro William do Corinthians, por sua vez, considera o recurso normal. Para ele, 'feio é pegar dinheiro para perder. No ano passado, Val Baiano e Renê foram afastados do Barueri (agora, Grêmio Prudente) por terem dito que o time recebeu a mala branca para enfrentar o Flamengo - o Barueri venceu o jogo por 2 a 0.
Mas, quem é o 'homem da mala branca'? Como é feita a negociação? De onde vem o dinheiro? Qual a quantia mínima? O GLOBOESPORTE.COM conversou com dois personagens que fizeram a função de maleiros no Campeonato Brasileiro de 2009. Ambos pediram para não ter seus nomes divulgados e falam sobre como funciona a mala branca. Leia nos depoimentos abaixo:
Entrevistado 1: 'Com R$ 50 mil nem dá para começar'
'É um acordo de homem para homem. Tudo na base da confiança e tratado diretamente com os jogadores. Geralmente um dos líderes. O mundo do futebol é pequeno. Sempre vai ter algum jogador que conhece pessoas do clube interessado em pagar a mala. E aí esse jogador será o caminho mais curto para a proposta. É ilusão achar que não existe mala branca. Você acha que o Goiás correu normal contra o Flamengo e o São Paulo em 2009? É só analisar. Se eles jogassem daquela forma em todos os jogos seriam campeões.'
'Na maioria das vezes, o dinheiro vem em um saco'
"Jogador pergunta: Cadê o dinheiro?"
'O procedimento é simples. O emissário viaja para a cidade em que o time está e vai direto ao hotel. Normalmente acontece no dia do jogo ou na véspera. Não é nada combinado por telefone, até porque existe o receio de grampearem a ligação. A negociação é rápida, não dura mais do que dez minutos.
O papo é: “Fulano, estou com o dinheiro para vocês ganharem o jogo. Vim a mando de tal clube”. A resposta padrão do jogador é: “Cadê o dinheiro?”. E então abre-se a mala. Ou o saco. Na maioria das vezes o dinheiro vem em um saco. Sempre dinheiro vivo e sempre em real (R$). Como é arriscado transportar grandes valores em aeroportos, os dirigentes às vezes transferem o dinheiro para uma conta de um amigo que mora na cidade do time beneficiado e eles que sacam o dinheiro e entregam ao emissário'
'Claro que nada é pago antes do jogo, mas ao ver o dinheiro o jogador tem certeza que vai receber. É aquilo que falei: o mundo do futebol é pequeno, não adianta combinar e não pagar porque senão você fica queimado. Durante o jogo o emissário vai para o estádio e fica em contato direto com o dirigente por telefone para informar o placar. A informação sai antes da bolinha da Globo (sinal que avisa que saiu gol na rodada), com certeza.'
'Assim que acaba o jogo, o intermediário liga para o jogador que firmou o acordo para acertar onde será feito o pagamento. Geralmente é no hotel mesmo. Mas às vezes vai um segurança do clube ou um amigo do jogador buscar a grana em um local combinado.'
'O emissário recebe uma gratificação pelo trabalho, claro. O dirigente paga a passagem e dá mais uns R$ 4 mil. Para o dirigente compensa. Quem não quer ser lembrado para sempre como comandante de um título? Na hora do desespero, do sufoco, apelar para a mala branca é a solução mais viável.'
'Para o dirigente é importante avisar ao grupo que mandou mala branca a outro time. Pega bem para ele porque fica conhecido como um cara de palavra, uma pessoa confiável. No futuro isso pode ser importante numa negociação ou em outro pedido de ajuda.'
'Não existe uma tabela de preço. Mas com R$ 50 mil não dá nem para conversar. Tem que ser a partir de R$ 150 mil, podendo chegar a R$ 300 mil facilmente. Todo jogador vai aceitar. Não tem por que não aceitar. O jogador vai entrar em campo de qualquer forma. Melhor receber algo do que ficar no zero. Teve clube que recebeu duas, três malas brancas em um jogo. Dá para garantir um bom fim de ano. Teve time aí que só no ano passado ganhou uns R$ 800 mil em mala branca. É um bom troco, né?'
'Não sei como é feita a divisão. Mas na maioria das vezes sobra dinheiro para o roupeiro, massagista... Lembro que o roupeiro de um clube recebeu a parte dele e foi direto para um termas gastar e beber tudo. Só não posso afirmar que os técnicos também entram no rateio'
'Nem adianta tentar pagar para perder porque os jogadores não aceitam. Isso não existe no futebol. Tem uma ética, mas principalmente tem um medo muito grande de que, de alguma forma, isso vire escândalo. Nem adianta tentar oferecer mala preta. Senão seria muito fácil para os times que têm mais dinheiro. Eles pagariam mala branca, preta e seriam campeões sempre'
'Outra coisa que não existe no futebol é tentar superar rivalidades com mala branca. Essa coisa de estado é muito forte. Não havia a menor chance de o Grêmio aceitar dinheiro do Inter, por exemplo, para ganhar do Flamengo no Rio. Isso é impossível.'
Entrevistado 2: 'A negociação é rápida porque o assunto é constrangedor'
'A mala branca é a praga dos pontos corridos. Todo campeonato tem. Mas mala preta é lenda. Isso não existe. Nunca vi e nunca soube. Quando o pagamento não é feito no dia, o jogador recebe ligações dizendo que ainda estão "confeccionando as camisas". Esse é o código. A negociação é muito rápida porque o assunto é constrangedor, né? Ninguém quer ficar mastigando um assunto que é, digamos, politicamente incorreto. No primeiro contato o intermediário ou o próprio dirigente liga e fala: "Quero falar contigo". O encontro acontece no hotel da concentração ou em um café. Coisa rápida. Fala-se; "Vou pagar tanto para você empatar". E o jogador só confirma: "Tudo certo". E vamos embora. Ninguém quer muito papo.'
'Nunca é bom negociar com jogador bocudo'
'Não é uma receita de bolo. Tem dirigente que se hospeda no mesmo hotel do time e combina: "Oh, vou deixar a mala no hotel quando acabar o jogo". Normalmente é uma mala velha ou um saco. Por que entregar uma mala novinha?'
'Nunca é bom negociar com jogador bocudo (falastrão). Porque uma hora ou outra ele acaba soltando algo. O Val Baiano, por exemplo, está queimado. Ninguém mais vai tratar direto com ele. Mas sempre rola uma mudança no comportamento. Os jogadores usam códigos para dizer que o jogo vale gratificação. Certa vez um deles gritava durante o treino: "O fubá desse fim de semana tem chantilly".'
'Nunca é bom negociar com jogador bocudo (falastrão). Porque uma hora ou outra ele acaba soltando algo. O Val Baiano, por exemplo, está queimado. Ninguém mais vai tratar direto com ele. Mas sempre rola uma mudança no comportamento. Os jogadores usam códigos para dizer que o jogo vale gratificação. Certa vez um deles gritava durante o treino: "O fubá desse fim de semana tem chantilly".'
'Também é importante traçar o perfil do jogador que vai ser abordado. Tem que ser líder do grupo e não pode ser evangélico. Os evangélicos ficam apavorados. Podem sair correndo pelo hotel gritando e aí explana (gíria para tornar pública alguma coisa) tudo (risos).'
'Não acontece apenas no Brasileiro. Em fase de grupo de competição internacional também tem muito. E é mais barato. Primeiro porque nossa moeda é muito forte. Segundo porque não paga-se ao time todo. Paga-se a quatro, cinco e eles são responsáveis por incendiar o resto do time. Aqui no Brasil isso é inviável. Se você negociar com alguns e isso vazar para o líder do elenco dará um tiro no próprio pé. É muito mais prudente tratar com o time todo.'
'Em clubes que têm "dono" o dinheiro vem direto do caixa. Nos outros, os dirigentes fazem um rateio para conseguir o valor ou então pedem auxílio aos empresários. Depois, aos poucos, eles têm o dinheiro de volta. No balanço isso entra como premiação. Às vezes, os próprios jogadores do time que vai ser beneficiado abrem mão de uma parte do bicho deles para os outros. Tem um clube que apela. Enquanto a maioria libera dinheiro faltando duas, três rodadas, eles começam a dar o incentivo restando ainda oito jogos. É desleal, não tem como concorrer. Mas de qualquer forma, o investimento compensa. Sempre vem dinheiro forte de bilheteria, prêmios dos campeonatos.'
'O que muita gente esquece é que várias dessas malas são tiro n'água. Combina-se com o time e ele perde. Há algumas missões impossíveis, mas os dirigentes fazem só por desencargo de consciência. Quando não dá certo o dinheiro volta para o clube ou dirigente. Só pagam a comissão do intermediário.'
'São poucos os dirigentes que metem a cara. A maioria manda os buchas que não têm vínculo com o clube porque se der merda vai estourar neles. Mas todos os presidentes de clubes que oferecem o dinheiro sabem. Todos.'
'As rivalidades, na maioria das vezes, não resistem às malas brancas porque são acordos que não passam pelos dirigentes do clube que recebe. É direto com o jogador. E jogador é malandro, quer é ganhar dinheiro. Não vai se importar de dar uma classificação à Libertadores para o rival se tiver um dinheirinho no bolso.'
'Não acontece apenas no Brasileiro. Em fase de grupo de competição internacional também tem muito. E é mais barato. Primeiro porque nossa moeda é muito forte. Segundo porque não paga-se ao time todo. Paga-se a quatro, cinco e eles são responsáveis por incendiar o resto do time. Aqui no Brasil isso é inviável. Se você negociar com alguns e isso vazar para o líder do elenco dará um tiro no próprio pé. É muito mais prudente tratar com o time todo.'
'Em clubes que têm "dono" o dinheiro vem direto do caixa. Nos outros, os dirigentes fazem um rateio para conseguir o valor ou então pedem auxílio aos empresários. Depois, aos poucos, eles têm o dinheiro de volta. No balanço isso entra como premiação. Às vezes, os próprios jogadores do time que vai ser beneficiado abrem mão de uma parte do bicho deles para os outros. Tem um clube que apela. Enquanto a maioria libera dinheiro faltando duas, três rodadas, eles começam a dar o incentivo restando ainda oito jogos. É desleal, não tem como concorrer. Mas de qualquer forma, o investimento compensa. Sempre vem dinheiro forte de bilheteria, prêmios dos campeonatos.'
'O que muita gente esquece é que várias dessas malas são tiro n'água. Combina-se com o time e ele perde. Há algumas missões impossíveis, mas os dirigentes fazem só por desencargo de consciência. Quando não dá certo o dinheiro volta para o clube ou dirigente. Só pagam a comissão do intermediário.'
'São poucos os dirigentes que metem a cara. A maioria manda os buchas que não têm vínculo com o clube porque se der merda vai estourar neles. Mas todos os presidentes de clubes que oferecem o dinheiro sabem. Todos.'
'As rivalidades, na maioria das vezes, não resistem às malas brancas porque são acordos que não passam pelos dirigentes do clube que recebe. É direto com o jogador. E jogador é malandro, quer é ganhar dinheiro. Não vai se importar de dar uma classificação à Libertadores para o rival se tiver um dinheirinho no bolso.'
'Existe o chamado condomínio. Dois clubes se unem para dar a mala. Certa vez, em 2008, um deles tratou com o técnico e outro com o jogador. Mas não deu certo porque os acertos eram diferentes. Enquanto uma das partes combinou apenas a vitória, a outra condicionou o pagamento à classificação do time à Libertadores. O time incentivado fez a parte dele, mas o incentivador perdeu, não se classificou e não pagou.'
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