Despedidas
por Gustavo Poli
A hora chega, impiedosa. As pernas pesam. O abdômen progride. Os passos ficam mais curtos. O espelho informa cabelos grisalhos – ou a falta deles. Os teletubbies da consciência começam a buzinar. O tempo, esse zagueiro indriblável, veio tomar a última bola. Parar, para o esportista de alto nível, é uma pequena morte – imagine abrir mão de algo que fez parte de sua identidade pública – e privada – durante eras. Roberto Carlos – o cantor, não o lateral – citou seu coração em muitas de suas letras. Mas, no meu ouvido, ele sempre esteve em “Despedida”…
“Já está chegando a hora de ir… vim aqui me despedir e dizer (…) Só me resta agora dizer adeus… e o meu caminho seguir. O meu coração aqui vou deixar, não ligue se acaso eu chorar… mas agora…”
A semana nos trouxe duas mega-despedidas em menos de 72 horas. Quatro chuteiras proverbialmente penduradas – quase ao mesmo tempo. Neste domingo, no Engenhão, Dejan Petkovic, 38 anos, jogou 45 minutos, entrou no vestiário, tirou a camisa do Flamengo e desatou seus cadarços futebolísticos pela última vez. Na terça, será a vez de Ronaldo Luiz Nazário de Lima.
Sempre me perguntei sobre essa imagem derradeira. A hora em que o jogador descalça as chuteiras em sua última partida, em que o maestro tira seu último fraque, em que o artista tira a maquiagem após a última cena. Um ato banal, num vestiário da vida. Lá fora, o público se refaz do último aplauso e pensa no passado. Cá dentro, Pet, o mortal Dejan, desata os últimos laços, afrouxa os cadarços, puxa a lingüeta, tira um pé da chuteira – depois outro… e suspira. Terminou.
O que passou pela cabeça de Pet ali – naquele instante banal – e único? O primeiro gol pelo Madjanepek? A estreia pelo Estrela Vermelha? O golaço pelo Fluminense contra o Cruzeiro? A bola no ângulo de Hélton aos 43? Ou a frustração de um adeus sem gols, o eco dos gritos arquibaldos? Talvez apenas a imagem fosca de seus pés, cansados, pisando no chão, rumando para o chuveiro, deixando para sempre a possibilidade de alegrar a multidão?
Pet e Ronaldo passearam por nosso imaginário nos últimos 15, 20 anos. Ronaldo foi maior, uma estrela planetária, símbolo de uma geração. Pet foi um ídolo local – com futebol mundial. Vê-los boleiramente descalços soa estranho – mas… bom, o tempo passa também para os fenômenos. Vê-los jogando – depois do auge – vinha soando ainda mais estranho.
Ronaldo, aos 34 anos, não deixou o futebol em seus termos – foi, aos poucos, lesão apos lesão, quilo apos quilo, deixado por ele. Quando viu que nem sua técnica superior, nem a inteligência… conseguiam compensar os limites do corpo – e da paciência – cansou. E parou surdamente – esperando por seus últimos 15 minutos de fama em campo – que virão nesta terça-feira – com a camisa que melhor vestiu.
Pet, aos 38 anos, também não parou exatamente em seus termos. Foi afastado do elenco principal do Flamengo – e ficou treinando à parte até acertar o contrato de adeus. Em paz com o clube, 10 anos depois de marcar seu gol mais querido, recebeu como homenagem uma partida oficial – na qual atuou como jogador, deu dois belos passes, correu. Jogou bem e vibrou de boca aberta no gol de Renato.
(Muito se criticou o Flamengo por misturar adeus com jogo pra valer – mas é provável que Luxemburgo soubesse que Pet tinha condições de jogo. Pelo que se viu em campo – ele poderia até funcionar como reserva para jogar 15, 30 minutos).
Estranho o destino que aproximou dois craques de trajetórias opostas – e espremeu seus últimos chutes na bola num curto intervalo. Ronaldo que deixou o Brasil rumo à Europa – ganhou músculos, força, perdeu os joelhos, um por um – e depois voltou e foi adotado pelo Corinthians. Petkovic, que deixou a Europa rumo ao Brasil, voltou, foi ao Japão, aos Emirados, para enfim voltar mais uma vez – e fazer diferença.
O nômade Pet chegou ao Brasil pelo Vitória, fez uma escala no Venezia e desembarcou no Flamengo, onde jogou dois anos. Depois pulou para o Vasco (salvando o time do rebaixamento em 2003), foi para o Japão, voltou para o Vasco, migrou para o Fluminense (onde fez jogos memoráveis) – andou por Goiás, Santos e Atlético-MG – até voltar, desacreditado, ao Flamengo em 2009 – e ajudar o time a faturar o Brasileirão. No total, Pet jogou por 15 times diferentes em 21 anos de carreira.
Ronaldo atuou por sete times como profissional – Cruzeiro, PSV, Barcelona, Inter de Milão, Real Madrid, Milan e Corinthians. Por onde passou, foi estrela principal da companhia – e só deixou de jogar por absoluta falta de condições físicas.
Chega a ser irônico pensar que Ronaldo, rubro-negro até a medula, queria jogar naquele Flamengo de 2009 - mas acabou assustado pelas confusões da Gávea. Aceitou o projeto do Corinthians – e se tornou ídolo da Fiel, ganhou um titulo paulista e uma Copa do Brasil. O grande sonho corinthiano, porém, a Libertadores se desmanchou justamente diante do Império do amor do Fla em 2010. Nos dois anos em que jogou pelo Timão, Ronaldo nada produziu quando jogou contra o time carioca.
Um pedacinho de Fenômeno, com certeza, se arrepiou com a despedida de Pet ontem – porque ele, até outro dia, carregava o escudo do Flamengo no chaveiro. Os rubro-negros podem não acreditar – mas Ronaldo, no fundo, torce mais pelo Flamengo do que Pet. Mas – ao treinar e ver as condições do clube - o Fenômeno foi mais profissional do que passional. Acreditou que jogar no Corinthians seria melhor para a marca Ronaldo – e para seu futuro pós-bola.
Não deixa de ser curioso que o último lance de Petkovic pelo Flamengo tenha sido uma falta – desta vez cometida por ele, pouco antes do fim do primeiro tempo. Como se fosse uma memória – a última falta para lembrar a falta maior, aquela cobrada aos 43. Nesta terça os quase 43 mil rubro-negros que se despediram ontem do camisa 43 (a 10 estava com um outro Ronaldo) devem vestir outra camisa sobre a pele rubro-negra – essa que faz o torcedor gostar mais do sérvio Dejan – que jogou bem por Vasco e Fluminense – do que do brasileiro e rubro-negro Ronaldo. Vestir a mais amarela das camisas.
Qual será o último lance de Ronaldo? O que passará pela cabeça do Fenômeno, ao entrar no vestiário e desatar os cadarços de sua autografada chuteira pela última vez? Quantos jogos… quantas lesões, quantas arrancadas… o choque de 98, as dores, os gols sobre a Alemanha… quantas memórias dele serão também nossas?
Onde você estava naquele dia de 2002 – quando Oliver Kahn soltou a bola de Rivaldo e o menino de cabelo cascão chutou a bola pra dentro? Você se lembra, certo? Por essas e outras, sem medo de ser brega ou piegas, eu fico com Roberto Carlos. O rei, não o lateral:
“Já está chegando a hora de ir… venho aqui me despedir e dizer… em qualquer lugar por onde eu andar… vou lembrar… de você. Só me resta agora dizer adeus… e depois o meu caminho seguir. O meu coração aqui vou deixar, não ligue se acaso eu chorar… mas agora, adeus…”