Dinheiro, fama e mudança de hábito: profissionais apontam falhas na base
Fracasso da seleção sub-20 acende discussão sobre o comportamento de jovens e a influência que recebem antes de chegarem aos profissionais
Companheiros de Fla, Adryan e Mattheus treinam
com a seleção (Foto: Alexandre Durão)
com a seleção (Foto: Alexandre Durão)
Em meio à disputa do Sul-Americano sub-20, na Argentina, Mattheus é
solicitado para dar entrevistas. Insatisfeito por ser sempre lembrado
como “filho de Bebeto”, ele avisa - via assessoria de imprensa - que não
falaria com jornalistas brasileiros e estrangeiros caso continuasse
tendo seu nome vinculado ao do pai. Rafinha, do Barcelona, também não
gostava de ser comparado com o pai Mazinho, companheiro de Bebeto na
conquista da Copa de 1994 com a Seleção.
Em Minas Gerais, Leleu é convocado para treinar com os profissionais,
ainda em 2012. Aproveita a oportunidade e aparece com novo penteado,
pintando o cabelo de loiro. A comissão técnica dá um puxão de orelha, e o
jogador retorna à atividade da tarde com um corte mais discreto. O
brinco, porém, não sai da orelha.
Um dos destaques do Santos na Copa São Paulo de Futebol Júnior deste
ano, Neilton costuma valorizar o visual, muito parecido com o de Neymar.
O mesmo faz Gabigol, que garante ter um moicano mais bonito que o do
craque santista.
Os exemplos são apenas alguns da atual geração sub-20, que cada vez
mais cedo ganha espaço entre os profissionais e destaque na mídia,
aumentando sua remuneração e o faturamento dos clubes com venda para o
exterior. A eliminação precoce da seleção no Sul-Americano da categoria -
não conseguindo ficar entre os três primeiros em um grupo de cinco -
fez surgirem críticas e dúvidas sobre o comportamento dos atletas. A
primeira partiu do próprio técnico Émerson Ávila, que afirmou:
- O jogador hoje em dia tem muito poder no futebol. Talvez isso aconteça por concessões que o clube acaba fazendo.
Diante deste cenário, o GLOBOESPORTE.COM ouviu jogadores, técnicos,
dirigentes, psicólogos e empresários e visitou treinos dos juniores dos
quatro principais times do Rio de Janeiro, além de ouvir histórias e
depoimentos em outros clubes grandes do país. Jogadores se defendem,
treinadores apontam falhas em certas posturas, empresários tentam evitar
jovens problemáticos e psicólogos procuram estudar até a estrutura
familiar para traçar metas e evitar deslizes no meio do caminho. A
ascensão meteórica e o crescimento socioeconômico parecem ter mudado o
comportamento dos jogadores na base. E será que estão tomando o cuidado
devido com eles?
Dunga, técnico Inter, faz críticas à base
(Foto: Tomás Hammes / GLOBOESPORTE.COM)
(Foto: Tomás Hammes / GLOBOESPORTE.COM)
- Eu acho que tem que trabalhar mais a cabeça de quem os comanda. É
muito fácil colocar a responsabilidade em cima dos moleques. Tem que
cobrar de quem os comanda, quem dá regalias, quem dá esses salários,
quem cobra deles. Depois que dá errado, é muito fácil dizer que o menino
está errado. É que nem um filho. Se você não educá-lo, depois não
adianta dizer que ele está errado. Essa é uma das minhas broncas no
Inter - disse Dunga, ex-treinador da Seleção e atual comandante do
Colorado.
O Flamengo forneceu um exemplo de comportamento de jovens da base e de
quem os comanda. No fim de um treino no Ninho do Urubu, em uma conversa
entre juniores e recém-promovidos aos profissionais, Rodolfo conta que,
ao chegar de carro, o porteiro perguntou a ele e a Rafinha se eram
atletas - procedimento para a identificação de quem entra e sai do CT.
Rafinha, sorrindo, complementa que fechou o vidro da janela do carro e
seguiu.
Os dois receberam de volta gargalhadas e a frase de um dos integrantes
da comissão técnica da base: “Ele não vê jornal?”. O episódio foi dias
antes da vitória por 4 a 2 sobre o Vasco, partida em que Rafinha de fato
se destacou.
- Nesse dia nós chegamos e demos bom-dia. Aí, ele (o porteiro) nos deu a
plaquinha (do estacionamento) e perguntou se éramos atletas. Nós rimos e
fomos embora. Passamos todo dia por ele, e via nossa cara. Com certeza
éramos atletas - contou Rodolfo.
A psicóloga dos juniores do Botafogo, Michele Melhem, não citou casos
específicos, mas explicou como agir no convívio diário ao ser
questionada sobre o excesso de brincadeiras das comissões técnicas com
os jogadores na base.
- É importante não perder a interação, a relação de brincadeira, ainda
mais nos juniores, porque consideramos que eles não estão prontos. Mas é
extremamente pertinente o que está dizendo, tem que saber a hora de dar
a bronca, ser mais duro, falar com seriedade. Mas a brincadeira existe
até no profissional, como um estilo para formar um espírito coletivo de
grupo.
Brincadeiras à parte, os jogadores fogem do discurso comum e
monossilábico quando o assunto é o vai e volta da base. Quem tem a
possibilidade de treinar no time de cima costuma reclamar ao ter de
retornar.
- O que atrapalha mesmo é o psicológico do jogador. A gente almeja
aquilo desde cedo, e, quando chega lá, tem que descer... O pessoal desce
até um pouco desanimado, porque quer ficar lá (no profissional) para
sempre - contou o lateral-direito Igor Julião, de 18 anos, que atua no
Fluminense e evita o estilo boleirão de se vestir.
O contato com ídolos é acrescido ao deslumbramento com a nova vida. E
os treinadores creem que isso foge do controle, acreditando que pode
existir certo descompromisso com a base.
- Às vezes eles pensam que viraram jogadores (profissionais). Vemos
acontecer essa falta de compromisso, ou com clube ou com a seleção
sub-20, o que nos deixa chateados. Aqui no Fluminense tentamos
interferir no processo. Não é fácil, tem muita coisa de fora que
interfere. É uma briga de cachorro grande. Nós queremos puxar para um
lado e muita coisa puxa para outro - opina Marcelo Veiga, técnico dos
juniores do Fluminense.
Ideia parecida tem Cleber dos Santos, treinador do Flamengo.
Ideia parecida tem Cleber dos Santos, treinador do Flamengo.
- Os jogadores estão sendo aproveitados muito precocemente. Uma
cobrança muito grande para os jogadores de 15 a 17 anos, de apresentarem
um rendimento de profissionais. E essa cobrança pelo rendimento também
altera o comportamento. Eles veem como espelho os jogadores do
profissional, que têm um comportamento diferente dos da base pelo
salário, pelo local onde moram, pelo status social. Então esses
jogadores, quando começam a ter esse tipo de cobrança, se acham no
direito de se comportarem da mesma maneira que os profissionais. Vejo
que isso é uma bola de neve. Pela cobrança, pelo espelho nos jogadores
do profissional, que têm muitas regalias... Os jogadores da base veem
isso como uma forma natural, como tem acontecido ultimamente - disse.
A possibilidade de maior remuneração é demonstrada de diversas maneiras
no mundo das categorias de base. Em um treino do Vasco, um funcionário
avisava que teria de conversar com Jhon Cley - que trabalhava com os
juniores após um período entre os profissionais. E ouve de outro
jogador, em tom de brincadeira: “Já vai sufocar”, uma maneira de dizer
que faria um pedido de ordem financeira. No Flamengo, houve episódio
semelhante: um funcionário aproximou-se da lateral e brincou com um
atleta: “Quando estiver lá (no profissional), vai me dar um carro de
presente”.
Muito dinheiro
Então entra o dinheiro. Nos juniores, os atletas recebem em média de R$
2 mil a R$ 4 mil. Em casos extremos de promessas com potencial, os
salários podem alcançar valores próximos de alguns profissionais. Isso
faz com que se tornem comuns, em treinos dos jovens, tênis extravagantes
e chuteiras com cores chamativas - geralmente cedidos por fornecedores
de material com quem eles já têm contrato ou oferecidos pelos
empresários - além de celulares de última geração e cordões de ouro. E
às vezes o comportamento sai dos treinos e vai para as redes sociais.
Renan, apelidado de Panterinha por ser filho do ex-atleta Donizete
Pantera, postou no Twitter que havia gastado R$ 1.800 em uma boate.
Cobrado por alguns torcedores na rede social, o meia do Flamengo
respondeu com um novo post: “Não sou nenhum Adriano da vida, não! Não
sei nem o que é esse dinheiro. Era só zoação. Quem me dera ter 1.800”.
Panterinha diz que declaração no Twitter foi brincadeira e cita Adriano (Foto: Reprodução / Twitter)
Atual treinador da base do Botafogo, Anthony Santoro faz uma comparação
com duas promessas do Fluminense da época em que trabalhou por lá.
- O Lenny uma vez chegou a um treino com um Audi, um carrão. Foi lá nos
ver em Xerém. Ele não vinha de um momento bom no profissional. Veio com
a calça camuflada, cheio de cordão, óculos de dar inveja em mulher.
Falei que era o momento de passar despercebido. Disse: “O momento não
está bom para você. Chega mais tranquilo, reservado, para não virar o
holofote para você”. Ele só ouviu. No dia seguinte, chegou o Marcelo,
com um Peugeot 206, bermudinha tranquila. Ele quase saindo para o Real
Madrid, e o Lenny em um momento ruim, os dois no profissional. O Marcelo
mais tranquilo, reservado, e decolou. O Lenny até hoje não conseguiu -
conta Anthony Santoro, que também trabalhou no Flamengo e citou Bruno
Paulo como exemplo de jogador que se deslumbrou com dinheiro.
Vilão ou não?
Quem trabalha com a base costuma reclamar da ação de empresários.
Técnico do Flamengo, Cleber dos Santos diz que os jovens ganham mimos
dos agentes - às vezes para criar um vínculo - e perdem contato com a
realidade deles. Narciso, treinador do Palmeiras, cita o empresário que
faz a vontade dos clientes:
- O jogador não tem muito compromisso de brigar pela posição. Deveria
se desdobrar e provar que tem o mesmo nível do que está jogando. Mas ele
fala com o empresário, que o tira do clube e o coloca em outro.
Os empresários de renome se defendem e garantem que têm diminuído a
ação nas categorias de base. Segundo eles, o mercado está aquecido para
quem acabou de entrar no ramo e oferece ajuda de custo, bens materiais e
pertences para cativar os meninos e criar um vínculo afetivo que os
garanta vantagem em futuras negociações de contrato.
- Estamos investindo pouco na base. Os empresários em geral procuram
pagar uma ajuda de custo. Mas é trabalhoso. Eu não tenho muito jogador
na base. Mas investimos. O grande problema são os treinadores da base.
Se tivessem nível de cultura melhor para trabalhar, ajudaria muito. São
geralmente ex-jogadores, que têm o mesmo vício que tinham quando eram
jogadores. Os clubes deveriam ter um trabalho melhor. Deveria haver um
curso para os treinadores da base - disse Léo Rabello, que tem entre
seus jogadores Thiago Neves, do Flu, e Bernardo, do Vasco.
Hábitos diferentes
Alguns jogadores tentam fugir de um comportamento que chame a atenção. Filho de médico, Carlos Daniel, de 18 anos, deixou Manaus para se dedicar ao futebol e divide treinos do Botafogo com a leitura e estudos. Aprovado na primeira fase da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele tinha o sonho de cursar medicina, mas não conseguiu fazer a segunda etapa por causa de um compromisso pelos juniores.
Hábitos diferentes
Alguns jogadores tentam fugir de um comportamento que chame a atenção. Filho de médico, Carlos Daniel, de 18 anos, deixou Manaus para se dedicar ao futebol e divide treinos do Botafogo com a leitura e estudos. Aprovado na primeira fase da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele tinha o sonho de cursar medicina, mas não conseguiu fazer a segunda etapa por causa de um compromisso pelos juniores.
- Brinco, cordão, não gosto muito. Procuro sempre estar na minha, para
não puxar a responsabilidade para mim. Uma responsabilidade que talvez
ainda não seja minha. Mesmo quando estiver na mídia, na fama, vou
procurar ser o mais simples possível. Além de jogar futebol, procuro ser
bom no estudo também. Meu pai é médico e me incentiva muito para
estudar, para ler - contou.
Carlos Daniel foi aprovado em medicina e foge do
estilo boleirão (Foto: Diego Rodrigues)
estilo boleirão (Foto: Diego Rodrigues)
O pilar da família, aliás, é um dos principais pontos observados por psicólogos.
- A base familiar faz o atleta se diferenciar nos seus comportamentos,
tanto de disciplina quanto de gerenciamento de carreira. O que não
significa questão econômica. Estou falando de base familiar, sistema
afetivo, emocional, de apoio, comunicação. Vemos pessoas de baixa renda,
com estrutura de família sólida, e o menino se destacando. A questão
familiar faz toda a diferença para se desenvolver no futebol - explica a
psicóloga Michele Mellen, do Botafogo.
E os conselhos deveriam perdurar, na opinião de Anthony Santoro, técnico da base alvinegra:
- Sabemos que muitas vezes as coisas entram em um ouvido e saem pelo outro, mas de tanto falar alguma coisa pode ficar.
E os conselhos deveriam perdurar, na opinião de Anthony Santoro, técnico da base alvinegra:
- Sabemos que muitas vezes as coisas entram em um ouvido e saem pelo outro, mas de tanto falar alguma coisa pode ficar.