Dossiê gramados: Brasil persegue o padrão europeu de qualidade
Ainda longe do ideal no cuidado com campos de futebol, país mostra evolução, mas clima, orçamento e calendário dificultam o processo
Ótimo gramado do Camp Nou, estádio do
Barcelona (Foto: Artur Melo - Arquivo pessoal)
Barcelona (Foto: Artur Melo - Arquivo pessoal)
Na final da Copa do Mundo de 1970, o Brasil vencia a Itália por 3 a 1
quando Pelé recebeu a bola e rolou para Carlos Alberto Torres, que subia
em velocidade pela direita. Após o belo chute, a bola morreu no canto
direito, estufando a rede. Mas a jogada guardou um detalhe perceptível
apenas com a aproximação da câmera de televisão. Antes de o lateral
brasileiro acertar a batida, uma pequena falha no gramado levantou a
bola, que pegou "na veia" para atingir o caminho perfeito. Possivelmente
esse detalhe não aconteceria hoje em dia nos campos classe A.
Muitas coisas evoluíram com rapidez no futebol, e isso se aplica aos
gramados. Os tapetes vistos pela Europa podem ser comparados a alguns
bons pisos brasileiros, como o de Vila Belmiro, Olímpico, Beira-Rio e
Ressacada, por exemplo, mas trazem uma reflexão sobre os casos da Arena
da Baixada, uma das sedes da Copa do Mundo de 2014, e do Engenhão,
estádio que recebeu mais jogos no país neste ano.
Gramado da Arena da Baixada é o mais castigado da Série A (Foto: Fernando Freire/Globoesporte.com)
Há muitas diferenças entre os gramados europeus e brasileiros, do tipo
de grama ao investimento. O orçamento dos clubes europeus prevê uma boa
fatia para o cuidado com os campos, tratando-os como um dos pontos
principais para a qualidade do espetáculo. A maioria dos clubes do Velho
Continente possui estádios próprios, o que minimiza uma possível
sobrecarga ao gramado. Enquanto o Camp Nou, estádio do Barcelona, tem
uma média de 30 partidas por temporada, o Engenhão atingiu o dobro disso
na metade deste ano, sem contar eventos como shows. No Pituaçu, em
Salvador, por exemplo, há uma meta controlada de, no máximo, serem
realizados 50 jogos por ano, número que o Serra Dourada contabilizou já
em agosto.
Arena da Baixada: atraso na entrega das sementes da grama de inverno
Os campos europeus são, por natureza, mais bonitos do que os
brasileiros porque usam grama de inverno, entre elas os tipos Lolium e
Fetusca, um piso que chama mais atenção por ter um verde mais intenso e
que é mais resistente ao período mais crítico do ano. A grama cresce bem
menos com a ausência de luz do sol e calor, por isso a dificuldade que
os agrônomos brasileiros encontram a partir de junho.
A grama Bermuda, usada na maioria dos campos brasileiros e em estádios
do sul da Europa, é de verão, passando o inverno praticamente
adormecida. Por isso é feita há alguns anos, em todos os estádios da
Série A, do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul, a prática do
"overseeding", a plantação de sementes de inverno do tipo Ryegrass PHD,
que formam um gramado novo e resistente ao frio. Elas formam uma
combinação que consegue reparar falhas impossíveis de serem corrigidas
com o curto tempo de uma partida para outra se o campo tivesse apenas a
grama Bermuda, avessa ao frio.
A grama Bermuda tem vários subtipos. No Engenhão e no Serra Dourada
encontra-se a Celebration, enquanto nos campos gaúchos e paulistas
predomina a Tifway. As mais antigas são a Batatais e a São Carlos, a
famosa grama de jardim, vista na Vila Capanema, estádio do Paraná. Outro
tipo menos usado atualmente é a Esmeralda, gramado da Arena do Jacaré,
em Sete Lagoas.
Os tipos de grama e o número de jogos dos estádios da Série A até 31 de agosto (Foto: Arte esporte)
A Arena da Baixada tem o pior gramado da Série A atualmente. O maior
problema aconteceu com o atraso na entrega das sementes de inverno,
importadas dos Estados Unidos. O produto chegou três meses depois do
esperado e, além disso, o período mais frio chegou antes, agravando o
crescimento da grama de verão e formando um gramado bem irregular,
sobretudo na parte do campo que não é bem alimentado pela luz do sol.
- Era para plantarmos a semente da grama de inverno em abril, mas só
conseguimos no final de junho. No frio, a Bermuda não cresce mais, e o
desgaste passa a ser praticamente irreparável - constata Flávio Vaz,
responsável pelo gramado da Arena da Baixada.
A ausência de luz do sol em 35% do gramado da Arena, devido à
construção mais fechada, também preocupa. Sem sol, o crescimento da
grama acontece de uma maneira muito mais lenta. Por isso o clube já
estuda preço e fornecedores de canhões de luz artificial, equipamento
usado nos gramados europeus e que ainda não existe no Brasil por razões
financeiras: além de custar aproximadamente R$ 2,3 milhões, a máquina
consome grande quantidade de energia. Um gasto que muitos clubes ainda
não têm como pagar. O Botafogo também já acenou com a possibilidade de
investir na tecnologia, mas há controvérsias.
A ausência de luz do sol nos gramados é algo novo no Brasil, uma vez
que a arquitetura dos estádios sempre foi pautada por arquibancadas mais
abertas, não tão coladas no campo. Agora, são justamente os estádios
modernos que apresentam mais problemas no gramado: Engenhão e Arena da
Baixada. Para a Copa do Mundo de 2014, essa é uma grande preocupação dos
agrônomos.
- Em Salvador, por exemplo, o sol é muito generoso. Temos 2.500 horas
de luz natural por ano, e a grama precisa de 1.100 horas. Mas, na Fonte
Nova, parece que vão fazer um estudo bem detalhado, já que, com o
sombreamento, talvez se faça necessária iluminação artificial - destaca
Hélio Ferraro, administrador do Pituaçu, estádio que tem sido usado pelo
Bahia enquanto a Fonte Nova é construída para 2014.
Mas nem todos os gramados europeus estão imunes aos problemas gerados
pela arquitetura fechada. O exemplo que mais chama a atenção é o do
estádio José Alvalade, do Sporting, em Lisboa. Construído dentro de uma
arena bem coberta, o campo chega a marcar uma diferença de 9º C entre
uma uma área e outra, dependendo dos raios do sol. O desequilíbrio no
crescimento da grama é grande, e os problemas, muitos. Tanto que o clube
estuda apelar para a grama sintética, o que é visto com ressalvas pela
maioria dos torcedores.
Placa em Wembley pede para as pessoas não
pisarem no gramado (Foto: Rodrigo Sirico/GE.com)
pisarem no gramado (Foto: Rodrigo Sirico/GE.com)
O tradicional estádio de Wembley, em Londres, foi por muito tempo alvo de críticas pelo estado do gramado. Da reinauguração em 2007 até 2010, a grama foi trocada 11 vezes,
mas os problemas continuavam. A solução encontrada foi utilizar fibras
artificiais para dar suporte à grama natural. E o problema foi
resolvido.
A gangorra Brasil x Europa também tem outros pontos fundamentais. A mentalidade da importância do investimento é o carro-chefe.
- Eles têm um orçamento absurdo para fazer o gramado. Chegam a gastar
um milhão de euros por ano, algo totalmente impensável por aqui. O
Brasil ainda é muito arroz e feijão - opina o responsável pelo gramado
do Morumbi, Daniel Tapia, que tem a opinião compartilhada por Artur
Melo, do Engenhão.
- Na Europa há mais investimento nos campos porque há maior
conscientização dos dirigentes sobre o tema há mais tempo. No Brasil
isso tem sido visto com mais cuidado há menos tempo. Antigamente era
muito pior. Hoje, por exemplo, os salários de jogador no Brasil (nos
principais clubes) estão bem altos. Vai haver um momento em que o
investimento nos gramados terá a proporção merecida para que um jogador
de primeira linha atue num gramado de primeira linha.
Responsável pelos ótimos gramados do Olímpico, Beira-Rio e Ressacada, a
engenheira agrônoma Maristela Kuhn presta serviços também para o Comitê
da Copa de 2014 e é um dos principais nomes do país no cuidado dos
campos. Segundo ela, os clubes ainda têm muito a evoluir, mas já estão
no caminho certo.
- Trabalho com futebol há 18 anos. Naquela época ninguém investia nos
gramados. A mudança tem acontecido. Temos melhores gramados, máquinas de
corte mais sofisticadas, que vão permitir um melhor acabamento no
campo. Claro que estamos evoluindo, mas ainda há muito a ser feito.
Diretor técnico da World Sports, empresa que cuida dos bons gramados da
Vila Belmiro e do Pacambu, Fábio Camara acredita que os brasileiros não
estão muito atrás dos europeus no know-how.
- A gente tem por aqui as técnicas de conservação dos gramados europeus
- garante, lembrando apenas que os equipamentos não são os mesmos.
Replantio total: método usado na Europa, longe da realidade brasileira
Dentro deste investimento europeu está previsto o replantio total dos
gramados. No San Siro (Giuzeppe Meazza), estádio usado por Milan e Inter
de Milão, por exemplo, acontecem até quatro trocas de gramado por ano,
algo que não é feito por aqui. Uma das grandes dificuldades de se fazer o
replantio total acontece por uma questão de logística, já que no Brasil
não existem fornecedores de rolos de 100 metros de grama. O máximo
encontrado por aqui são 40 metros, o que dificulta o trabalho de
nivelamento.
- É muito comum por lá fazer o replantio total do gramado, mas aqui só
fazemos nas áreas danificadas, onde o goleiro fica, por exemplo - conta
Artur Melo.
Clubes como Figueirense, Avaí e Vasco são alguns que mantêm viveiros
para o replantio das áreas danificadas. No clube carioca foi feita
recentemente a troca das duas pequenas áreas em tempo recorde, numa
mostra de como o calendário não deixa a grama respirar.
Viveiro para plantio de grama danificada no Orlando Scarpelli, casa do Figueirense (Foto: Richard de Souza)
- Para reparar a grama defeituosa nas pequenas áreas, mandamos vir do
nosso fornecedor alguns rolos e plantamos ao lado da estátua do Romário
(atrás do gol à esquerda das cabines de TV). Deixamos lá de 15 a 20 dias
mantendo o corte no mesmo nível do campo. Quando ela pega, a recortamos
e colocamos nas áreas. Era importante não plantar aqueles tapetes
porque eles soltam com muita facilidade e não teríamos tempo para que
eles se consolidassem. Aqui no clube muita gente comentou que não daria
tempo, mas felizmente conseguimos, apesar de não ter sido com o tempo
ideal - revela Bruno Coev, supervisor de patrimônio do Vasco.
No Pituaçu, são proibidos os treinamentos específicos de goleiros
No Pituaçu, em Salvador, são proibidos treinos de
goleiro (Foto: Raphael Carneiro/Globoesporte.com)
goleiro (Foto: Raphael Carneiro/Globoesporte.com)
A questão estrutural é tratada como prioridade há décadas na Europa. No
Brasil, ainda são poucos os clubes que possuem CTs, o que obriga os
estádios a serem usados para treinamentos, como acontece em São
Januário, por exemplo. No Pituaçu, em Salvador, os treinamentos são
controlados ao máximo. O Bahia pediu recentemente para fazer três
coletivos, mas somente um trabalho de 45 minutos foi autorizado. Além
disso, não é permitido treinamento específico de goleiros para não
sobrecarregar a área mais afetada do gramado.
- Considero um dos maiores problemas a falta de campos de treino. O
time acaba trabalhando muito dentro do estádio, que é o palco do show, e
deveria ser mais preservado, assim como é na Europa - avalia Maristela
Kuhn.
Luiz Fernando Vela, gerente de segurança e patrimônio do Santos,
considera, além da ótima drenagem, a ausência de treinos o principal
trunfo do bom gramado da Vila Belmiro.
- É muito raro o time treinar na Vila, e isso colabora muito para o gramado estar como está.
Entre as críticas de jogadores e treinadores aos gramados, há um oceano
de detalhes que ainda separam o tratamento europeu do brasileiro.
Investir é preciso. No pisoteio sem freio, os gramados clamam: aprecie
com moderação.