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Histórias Incríveis: tiro de Euclides da Cunha desgraçou jogador do Bota

Dinorah viu irmão matar escritor, levou tiro, seguiu jogando pelo Alvinegro e foi campeão antes de enlouquecer e se suicidar, miserável e inválido

 

Por Alexandre Alliatti* Rio de Janeiro

A sequência de acontecimentos atiça a incredulidade: jogador do Botafogo é baleado por Euclides da Cunha, participa da morte do escritor, enfrenta o Fluminense com uma bala cravada na espinha uma semana depois de levar o tiro, é campeão carioca no ano seguinte (enquanto perde parte dos movimentos do corpo), vai parar em um hospício, vira mendigo e suicida-se, miserável, inválido e louco, no Rio Guaíba, em Porto Alegre. De tão absurda, a história parece um roteiro ruim, uma tragédia grega, um causo qualquer. Não é. É incrível, mas absolutamente real - é a história de Dinorah, herói nos campos, vilão na sociedade, vítima em uma tragédia de sangue, amor, traição, literatura e até futebol.

Faz mais de um século. A morte de Euclides da Cunha, a cada punhado de anos, é recontada - ora pelo viés dele, ora com foco em sua esposa, Anna, ora concentrada em Dilermando, o amante dela. Dinorah é a vítima (quase) esquecida daquela manhã de domingo em que o autor de "Os Sertões" pegou um revólver para lavar sua honra. De 15 de agosto de 1909, quando foi baleado pelas costas, até 21 de novembro de 1921, quando cometeu suicídio, o zagueiro do Botafogo viveu uma decadência assombrosa. É uma maldade do destino: ele teve sua vida destruída pelas mesmas mãos que escreveram um dos principais livros da história brasileira.

Dinorah 1910 (Foto: Reprodução) 
O Botafogo campeão de 1910, com Dinorah, já debilitado pelo tiro de Euclides da Cunha (Foto: Reprodução)
Abaixo, o leitor conhecerá a trajetória, da glória à desgraça, do jogador campeão carioca de 1910 - título que deu ao Botafogo a alcunha de Glorioso. O relato é baseado em reportagens de jornais durante mais de dez anos e em livros escritos sobre a "Tragédia da Piedade". Em meio a uma série de contradições e versões confusas, esta reportagem prefere se basear especialmente em "Matar para não morrer", da historiadora Mary del Priore, obra lançada em 2009 pela editora Objetiva.

vera fischer guilherme fontes dilermando ana desejo minisérie (Foto: Reprodução/TV Globo) 
Vera Fischer viveu Anna, e Guilherme Fontes foi
Dilermando em "Desejo" (Reprodução/TV Globo)
A tragédia também foi encenada na televisão. Entre maio e junho de 1990, a TV Globo lançou uma série chamada "Desejo". Em 17 capítulos, a autora Gloria Perez e os diretores Wolf Maya e Denise Saraceni contaram a saga de traição e morte do escritor. Dinorah foi interpretado por Marcos Winter. Tarcísio Meira deu pele a Euclides da Cunha. Vera Fischer encarnou Anna, e Dilermando foi vivido por Guilherme Fontes. Marcelo Serrado, Marcos Palmeira e Vera Holtz também participaram da produção.


A preparação para a tragédia

Dilermando e Dinorah não deixavam olhares passarem despercebidos em idos da primeira década do século 20. Eram jovens, fortes - o primeiro de cabelos mais claros do que o segundo. Tinham características parecidas, como se um irmão fosse a sombra do outro: ambos viajados (do Rio Grande do Sul para São Paulo, de São Paulo para o Rio de Janeiro), ambos ligados à carreira militar, ambos atléticos. Os dois eram devotados aos esportes. Mas com aptidões diferentes. Dilermando era esgrimista dos bons. Dinorah preferia usar os pés. Jogava foot-ball, um sport que se espalhava pelos grounds (campos) cariocas e começava a se popularizar.
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JOGOS PELO BOTAFOGO
09/05/1909 – 2 x 2 Fluminense
30/05/1909 – 24 x 0 Mangueira
13/06/1909 – 2 x 1 América
11/07/1909 – 13 x 0 Hadock Lobo
22/08/1909 – 1 x 2 Fluminense
12/09/1909 – 2 x 1 Cruzador Amethyst-ING
19/09/1909 – 4 x 3 Cruzador Amethyst-ING
26/09/1909 – 1 x 1 América
02/10/1909 – 2 x 1 A A Palmeiras
22/05/1910 – 1 x 4 América
05/06/1910 – 9 x 1 Riachuelo
26/06/1910 – 3 x 1 Fluminense
03/07/1910 – 7 x 0 Hadock Lobo
10/07/1910 – 6 x 0 Rio Cricket
17/07/1910 – 4 x 4 São Paulo Athletic
15/08/1910 – 7 x 2 A A Palmeiras
07/08/1910 – 5 x 0 Rio Cricket
04/09/1910 – 15 x 1 Riachuelo
25/09/1910 – 6 x 1 Fluminense
02/10/1910 – 11 x 0 Hadock Lobo
12/10/1910 – 2 x 1 Combinado Carioca
06/11/1910 – 4 x 4 Fluminense
13/11/1910 – 5 x 2 São Cristóvão
07/05/1911 – 1 x 2 São Paulo Athletic
14/05/1911 – 3 x 0 Rio Cricket
23/07/1911 - 3 x 4 Americano-SP

Era esguio. Alto, também conseguia ser veloz. Sua missão era desarmar os forwards (atacantes) adversários, mas se arriscava a ir ao ataque de vez em quando. Fazia seus golzinhos - foram nove em 26 jogos pelo Botafogo, seis deles na goleada de 13 a 0 sobre o Hadock Lobo. Tão logo chegou ao Rio, já com a vivência de ter atuado pelo Internacional-SP, foi defender as cores do América. Na zaga rubra, foi aliado de Belfort Duarte, símbolo de disciplina, defensor que tinha asco a faltas. Jogou dois anos lá. Em 1909, trocou de time. Resolveu defender o Botafogo, sem ter ideia da desgraça que o destino bordava para sua vida.

Dinorah vivia dias simples. Jogava bola e tinha aulas na Escola Naval. Mas seu irmão era mais inquieto. Com 17 anos, trocava olhares com uma mulher bem mais velha, de 33. Pior: casada. Pior ainda: casada com um dos brasileiros mais célebres na época. Qualquer possibilidade de envolvimento seria um escândalo, uma bomba-relógio. Não poderia acontecer. Mas aconteceu.
Foi na Pensão Monat, no número 17 da Rua Senador Vergueiro, no bairro do Flamengo, que Dilermando e Anna começaram o romance proibido. Em 1904, Euclides partiu para uma expedição na Amazônia. Retornou apenas em 1906 - tarde demais para evitar um tórrido relacionamento entre sua esposa e aquele adolescente.

Anna foi morar naquela pensão para aplacar a solidão. Lá, viviam duas amigas de sua mãe, Angelica e Lucinda Ratto. Elas eram tias de Dilermando e Dinorah. Solteironas e futriqueiras, logo perceberam algo de estranho no ar. Em um piscar de olhos, a história se espalhou. E chegou aos ouvidos do escritor - que, inicialmente, não acreditou nos rumores.

Dinorah nada tinha a ver com a história. No auge do romance, estava em São Paulo, defendendo o Internacional. Não acumulava grandes preocupações. Pressão mesmo era Anna quem sofria. Para evitar maiores fuxicos, Dilermando se mudou. Mas os encontros prosseguiram. As suspeitas aumentaram. A situação começou a ficar incontrolável. O casamento virou um inferno.

Dilermando chegou a escrever uma carta para Euclides, alegando inocência. O escritor respondeu, dizendo a ele que se tranquilizasse: "Na sua idade nunca se é um homem baixo. Não creio que houvesse feito uma tal injustiça. A minha casa continua aberta aos que são justos e bons. Não poderá fechar-se para você."

Puro teatro. Anna estava grávida de Dilermando, e Euclides percebia a barriga crescendo. Em meio ao caos, Mauro nasceu prematuro - a mãe, em vão, tentara abortar, inclusive inserindo agulhas no corpo. A criança nasceu, mas morreu com oito dias de vida. Houve quem acusasse Euclides de matar o bebê, impedindo que a esposa o amamentasse.

Os protagonistas da história viviam o inferno. Euclides lidava com a traição; Anna carregava a fama de adúltera; Dilermando se equilibrava entre uma paixão proibida e a dor pela perda do filho. A situação foi amenizada em 1906, quando o militar foi convocado pelo Exército para retornar ao Sul. Mesmo assim, no ano seguinte, em visita ao Rio, ele reencontrou Anna. E a engravidou.

Nasceu Luiz, o Lulu. Era loiro, feito Dilermando, diferente dos filhos de Euclides - "uma espiga de milho em meio a um cafezal", como definia, ironicamente, o escritor. O filho bastardo não melhorou em nada o ambiente. E, em 1909, o triângulo amoroso chegou ao limite do insuportável, ficou a ponto de bala - de uma bala que arruinaria a vida de Dinorah, de volta ao Rio um ano antes.

Matar ou morrer

a casa da piedade dinorah na porta (Foto: Reprodução) 
Dinorah na porta da casa onde ocorreu a tragédia
em 1909 (Foto: Reprodução)
No sábado, 14 de agosto de 1909, Dinorah recebeu um pedido de Anna e Dilermando: que fosse à Rua Nossa Senhora de Copacabana observar, escondido, o máximo possível do comportamento de Euclides. O jogador, que há pouco soubera do relacionamento, acatou a solicitação. Afinal, era grande o temor na pequena casa da Estrada Real de Santa Cruz, na Piedade, onde agora moravam os irmãos. Solon, filho de Anna com Euclides, ouvira o pai jurar vingança. A apreensão pesava sobre os amantes.
Dinorah pouco conseguiu escutar. Ao retornar para casa, teve que acalmar Solon, perturbado com todo o absurdo da situação - a mãe se relacionando com um rapaz pouco mais velho que ele, o pai prometendo matar os traidores. Eles jogaram uma partida de xadrez. Tranquilizaram-se. E foram dormir - para depois despertar no dia que mudaria suas vidas.
Chovia. Euclides da Cunha escolheu sua pior roupa naquela manhã de domingo: uma calça de casemira escura, uma ceroula branca de linho, uma camisa de linho branco e uma camisa interna de flanela. No bolso, posicionou um revólver Smith and Wesson. Carregado. Pegou o trem na estação central e rumou para o subúrbio. Como não sabia onde era a casa, pediu informações a vizinhos. Até que a encontrou.

A moradia de número 214 era simples - uma construção de um pavimento, com duas janelas de venezianas, um portão baixo na entrada e um jardim enfeitado por um mamoeiro. Por volta de 10h, Dinorah observava o movimento da rua quando percebeu a presença de Euclides da Cunha. Assustado, virou-se para dentro da casa e avisou que ali estava o escritor. Acharam que era brincadeira dele. Mal sabiam que era o extremo oposto disso.

Dilermando rumou para seu quarto. Foi colocar seu traje militar. Anna e Solon se esconderam. E Euclides disse a Dinorah que queria falar com o irmão dele. Adentrou o portão. Invadiu a casa. Gritou: "Vim para matar ou morrer!". E depois arrombou o dormitório principal com um chute na porta, seguido de dois tiros. Começava o derramamento de sangue.

Dinorah, para proteger o irmão, pulou em Euclides. Os dois se engalfinharam. O escritor disparou duas vezes na direção do jogador - um tiro pegou de raspão. O zagueiro se levantou e correu na direção de outro quarto, onde pretendia pegar uma arma. Não chegou lá. Levou um tiro pelas costas, abaixo da nuca. Desabou.

Jornal Revista da Semana Euclides da Cunha (Foto: Reprodução) 
"Revista da Semana" mostra foto do velório de Euclides da Cunha (Foto: Reprodução)
Mas Dilermando também tinha uma Smith and Wesson. E ela também estava carregada. Com Dinorah caído, seu irmão e o escritor passaram a trocar tiros. Dilermando foi atingido abaixo da garganta, acima do estômago e no tórax. Sobreviveu. Euclides foi baleado no ombro direito, no braço esquerdo e no lado direito do peito. O último tiro, de uma bala de 17 milímetros de comprimento por nove de largura, foi fatal. O autor de "Os Sertões" cambaleou até o jardim, onde caiu morto, abatido pelo amante de sua mulher. Em um último suspiro, deixou uma frase de efeito, em uma derradeiro gesto literário - mas cujo teor varia na descrição de cada jornal da época.

- Sofri muito... matei... morro... mas perdôo - segundo o "Jornal do Brasil".
- Odeio-te, mas te perdôo - de acordo com "O Paiz".

O início do fim

Dinorah Assis, Especial (Foto: Reprodução) 
Dinorah vive decadência: vira mendigo e vai parar
em hospícios (Foto: Reprodução)
Foi o fato do ano. Os jornais se esbaldaram com o escândalo. Inicialmente, para proteger a honra de Euclides, compraram a tese (elaborada pelos irmãos e por Anna) de que o escritor agira em um impulso paranoico, envolvido pelas fofocas de Angelica e Lucinda Ratto. Por poucos dias, Dilermando e Dinorah foram tratados como vítimas de um desvio mental do intelectual. Eram elogiados!

- Dinorah de Assis, de exemplar comportamento e maneiras distinctas, é considerado excellente sportman. Tem grande predilecção pelo foot-ball, como hontem dissemos, occupando saliente lugar no 1º "team" do Botafogo Football Club, à rua Conde de Irajá - escreveu o "Jornal do Brasil".

- Dinorah de Assis, além de ser um excellente moço, de comportamento exemplar, nas horas de lazer, era um dedicadíssimo sportman. O seu sport predilecto era o foot-ball. Devido ao seu conhecimento profundo desse jogo, tem uma collocação de responsabilidade no 1º team do Botafogo Foot-Ball-Club, à rua Conde de Irajá. Em todos os matches em que Dinorah tomava parte, quer aqui, quer em S. Paulo, destacava-se pelas suas excellentes qualidades de eximio foot-baller - derreteu-se o "Correio da Manhã".

Mas isso logo mudaria. Com o aprofundamento das investigações policiais, ficou evidente que Dilermando e Anna tinham mesmo um caso, que Euclides efetivamente foi traído - e que Dinorah foi cúmplice do romance. A postura da imprensa, da noite para o dia, mudou radicalmente. Os irmãos passaram a ser perseguidos. Viraram vilões. E Dinorah não colaborou para amenizar isso.

Ele passou cinco dias entre hospitais e delegacias. Tentou invadir o local do crime, já que estava sem casa, e foi prontamente criticado pelos jornais. No domingo, veio a rebeldia maior: resolveu que iria a campo pelo Botafogo contra o Fluminense.

Foi um choque para a sociedade. Parecia absurdo que aquele rapaz, envolvido na maior tragédia do ano, trocasse o luto pelos uniformes de jogo, pelas chuteiras, apenas uma semana depois do ocorrido. Mas ele não quis saber. Foi mesmo assim - e como atacante. Detalhe: seguia com a bala cravada em sua espinha!

O Fluminense jogava em casa, e sua torcida era maioria. Ver Dinorah com a camisa alvinegra acirrou a antipatia do público pelo adversário, conforme relatou na época o "Jornal do Brasil".

- Às 3.12, quando, precedidos do referee Sr Wood, entraram os dous teams para o ground, victoriaram-nos prolongadas palmas e vivas, sendo que bem se notava ser maior a sympathia pelo Fluminense, que augmentou ainda ao ver-se entre os forwards do Botafogo o Sr Dinorah de Assis, um dos tristes protagonistas da tragedia da Piedade - escreveu o jornal.

O Fluminense venceu por 2 a 1. Dinorah não fez gols. Teve uma chance, mas foi superado por Waterman, goleiro transformado em herói por impedir que um dos envolvidos na morte de Euclides da Cunha saísse vitorioso.

- Dinorah aproveitou entao um bom passe de Lulu e avançou para o goal adversario. As archibancadas emocionaram-se e gritaram de toda a parte, tal era a sympathia do Fluminense: "Waterman! Waterman!". Elle já estava no seu posto, sereno, fleugmático. Dinorah aproximou-se e shootou rasteiro: - Waterman pegou a bola, sob uma estrepitosa salva de palmas, bateu-a duas vezes e passou-a - descreveu o jornal.

Galeria jornais Dinorah tragédia (Foto: Editoria de Arte / Globoesporte.com)

Enquanto Dilermando se recuperava dos tiros e enfrentava a fúria popular, Dinorah, também criticado, era vice-campeão carioca com o Botafogo. O futebol era presença sólida em sua vida. No ano seguinte, ele seguiria jogando. Mas começaria a perceber algo diferente. Ao contrário do que disseram os médicos, o tiro de Euclides da Cunha causara, sim, efeitos no corpo do zagueiro. Dinorah estava perdendo parte dos movimentos.

Motivo para largar os campos? Não tão cedo. Em 1910, ele participou ativamente do título estadual. Cada vez mais debilitado, fez gols nos massacres de 9 a 1 sobre o Riachuelo, em 5 de junho, e de 11 a 0 contra o Hadock Lobo, em 2 de outubro. Só não participou de uma partida na campanha de nove vitórias em dez jogos.

Veio 1911, e o corpo já não obedecia mais o jogador. Em 14 de maio, ele fez seu último jogo oficial, na vitória de 3 a 0 sobre o Rio Cricket. Também foi a campo em 23 de julho, em derrota de 4 a 3 para o Americano-SP em amistoso. Impossibilitado de correr, atuou como goleiro. E nunca mais vestiu alvinegro. Menos de dois anos depois da Tragédia da Piedade, o tiro de Euclides da Cunha encerrava a carreira de Dinorah. Mas o pior ainda estava por vir...

A miséria, a loucura e a morte

Os acontecimentos posteriores tornaram ainda mais absurda a Tragédia da Piedade. Em 1911, Dilermando e Anna se casaram. Solon, o filho-testemunha da traição, se rebelou com a família. Virou seringueiro no Acre. Foi assassinado por grileiros em 1916. No mesmo ano, Euclides Filho, o Quidinho, resolveu vingar o pai e tentou abater Dilermando. Incrível: foi morto por ele, repetindo a sina do escritor.

jornal Correio da Manhã Dinorah de Assis 2 (Foto: Reprodução) 
Jornal "Correio da Manhã" noticia o suicídio de
Dinorah em 1921 (Foto: Reprodução)
Enquanto isso, Dinorah despencava rumo à morte. O ex-zagueiro não conseguiu superar seus dramas. A invalidez impediu que jogasse futebol, e a antipatia da sociedade tornou a vida militar inviável. Ele ficou sem norte. Caiu em uma vida de bebedeiras. Contraiu sífilis. E passou a ter distúrbios mentais.

Em 1913, acompanhando o irmão em Minas Gerais, Dinorah foi parar em um hospício pela primeira vez. Foi nessa época que a bala disparada por Euclides da Cunha finalmente foi retirada de seu corpo.

Um ano depois, ele voltou ao Rio de Janeiro, e a situação só piorou. Fora de si, ele vagava pelas ruas. Dava pena. Em julho, entrou em um carro, uma espécie de táxi, e circulou pela cidade durante duas horas. Pediu que o motorista parasse na Praia de Botafogo, perto do clube. Com metade do corpo imóvel, se jogou na água. A tentativa de suicídio foi impedida por uma testemunha da cena.

- Paralytico de um lado, sem poder nadar, ia perecer, quando em seu auxílio correu o sr. Joaquim Alves Ferreira, empregado na Fundição Americana, que o salvou - descreveu o jornal "A Noite" em 6 de julho de 1914.

O drama de Dinorah comoveu parte da sociedade. Jornais pediram ajuda a ele. O Fluminense se solidarizou e sugeriu um jogo festivo. Em vão. O ex-zagueiro voltou a viver nas ruas. Companheiros dos tempos de América faziam o possível para que, escondido, ele passasse as noites sob as arquibancadas do estádio. Colegas da época de Botafogo abriam uma sala para ele no clube. Mas Dinorah não tinha cura: louco, paralítico e miserável, ele rumava para seu fim.

Em 1916, de volta a Porto Alegre, o campeão de seis anos antes teve outra tentativa de suicídio. Na Praça da Alfândega, no Centro da cidade, deu um tiro no peito. Novamente, não conseguiu dar fim à vida. Nos anos seguintes, reencontrou um pouco de paz ao voltar a viver com o irmão em Bagé, no interior gaúcho. Lá, segundo as memórias de Judith, filha de Anna e Dilermando, até tentou ensinar Lulu, seu sobrinho, a jogar futebol. Era uma cena comovente: de muletas, quase imóvel, brincava com uma bola - o objeto que tanto amava.

Mas os sinais de recuperação eram falsa esperança. Em 1921, novamente em Porto Alegre, a tragédia do ex-zagueiro encontrou seu ponto final.

Era domingo. Por volta de 17h, depois de conversar com conhecidos na Rua Barros Cassal, Dinorah rumou para o Rio Guaíba. E repetiu o que fizera no Rio de Janeiro. Na altura da Voluntários da Pátria, no trapiche da Companhia Becker, caiu para a morte. Foi visto por um policial, que logo iniciou a tentativa de encontrá-lo. Em vão. O corpo só foi achado uma hora depois, já sem vida.

"Campeão desde 1910", como canta o hino

Foram muitas as vítimas daquela manhã de domingo em 1909. Euclides foi para matar e acabou morto. Dois de seus filhos, Solon e Quidinho, não suportaram os acontecimentos e, direta ou indiretamente, também morreram por causa daquela tragédia. Dilermando teve longa vida, casou-se duas vezes, colecionou filhos, mas sempre conviveu com a imagem de vilão, de assassino - até falecer em 1951, vítima de colapso cardíaco. Anna de Assis também tocou sua vida, conseguiu viver com o homem que amava, mas sempre com a fama de adúltera tatuada em sua testa. Também morreu em 1951, de câncer.

Mas a maior vítima talvez tenha sido justamente a mais involuntária. Dinorah não traiu ninguém, não tentou matar ninguém. Por crimes e pecados de outros, pagou com o corpo, com a mente e com a vida. Pior: corre o risco de cair no esquecimento, mesmo tendo conquistado, com uma bala cravada na espinha, um título tão representativo para o Botafogo - o clube "campeão desde 1910", como se orgulha a primeira estrofe de seu hino.