Por Amir Labaki, de São Paulo
Fonte: Jornal "Valor Econômico"
Partida final em Estocolmo, em 1958, em que o Brasil derrotou os donos da casa por 5 a 2 Neste domingo completa-se meio século do primeiro grande triunfo mundial do futebol brasileiro, ao conquistar o título de campeão da Copa do Mundo na Suécia.
Muito material jornalístico tem sido produzido para celebrar a efeméride, em diários, revistas e TVs, mas o ponto alto exige uma ida ao cinema: o documentário "1958 - O Ano em Que o Mundo Descobriu o Brasil", de José Carlos Asbeg. Basta comparar o uso televisivo ao cinematográfico das mesmas imagens em preto-e-branco captadas na época.
Ao lado do montador Arthur Frazão, Asbeg soube respeitar a integridade dramática de cada jogada importante, sobretudo dos principais gols, a favor ou contra o Brasil. Enquanto a TV se concentra no gol puro, o cinema nos oferece a construção do lance que levou a bola às redes. Documentário é, entre outras coisas, tempo.
Além de utilizar bem o material de arquivo, o filme é generoso em depoimentos de protagonistas e testemunhas de várias nacionalidades. Sua coluna vertebral é a partida final em Estocolmo, em 29 de junho de 1958, em que o Brasil derrotou os donos da casa por 5 a 2. Em torno dela, o filme retrocede e avança na cronologia da campanha, mais dentro do que fora dos gramados.
A chefia da delegação brasileira foi confiada ao experiente cartola paulista Paulo Machado de Carvalho, indicado para o cargo pelo novo presidente da então CBD, João Havelange.
Ao entrevistar Havelange, Asbeg passa ao largo do fato de que ele não viajou com a delegação e acompanhou a Copa a distância, pelo rádio, no Brasil. É meu maior senão ao filme. Jornalistas e jogadores relembram como, depois dos fracassos de 1950 e 54, a seleção desembarcou desacreditada na Suécia.
Para complicar, o Brasil caiu no "grupo da morte" do torneio, ao lado de Áustria, Inglaterra e União Soviética. Com Garrincha na reserva e Pelé contundido, a seleção passou sufoco na estréia contra os austríacos, vencidos graças a três gols em contra-ataques.
No jogo seguinte, com Didi, o cérebro do time, marcado de perto, o Brasil ficou num empate sem gols com os ingleses. Apesar de o maior nome da partida ter sido o goleiro britânico MacDonald, acendeu-se o sinal amarelo. Para evitar a repetição da síndrome de "vira-lata" (Nélson Rodrigues), era hora de o técnico Vicente Feola mudar o time, escalando Garrincha e Pelé.
Coube ao lateral-esquerdo Nilton Santos informar a Garrincha, seu colega de Botafogo, que ele iria entrar na partida contra a URSS. Mané prometeu: "Se eu jogar, pode deixar." E cumpriu. É impagável a entrevista de um russo sobre o desespero nos vestiários, depois da partida, do "joão" (seu nome real era Kuznetsov) que tentou sem nenhum sucesso marcar um endiabrado Garrincha.
Aos três minutos, Mané tinha chutado uma bola na trave, Pelé outra e Vavá tinha aberto o placar. O Brasil acabou vencendo por 2 a 0. Com a dupla Garrincha-Pelé em campo, a seleção jamais perdeu uma partida. Num curiosíssimo depoimento sobre Pelé, o então ponta-esquerda Zagallo lembra: "Quando ele veio para a seleção, nós do Rio não sabíamos quem era." Não demorou.
Em sua segunda partida na Copa, nas quartas-de-final contra a retrancada seleção do País de Gales, Pelé marcou um golaço, com lençol na zaga e tudo. No jogo seguinte, a semifinal contra a França, nascia o mito: Pelé fez três gols e vencemos por 5 a 2. Os números secos pintam uma imagem enganosa da partida. "Acho que eles nos temiam mais do que nós os temíamos", garante o centroavante francês Jules Fontaine, artilheiro da Copa com 13 gols.
Vavá marcou o primeiro gol aos dois minutos e Fontaine empatou seis minutos depois. Um lance até hoje polêmico fez a balança pender a favor do Brasil. Numa dividida com Vavá, o zagueiro Jonquet fraturou a perna. Como não havia substituição nas partidas da época, a França se viu reduzida a dez homens em campo.
Os depoimentos ainda hoje empatam: os brasileiros absolvem o companheiro, os franceses consideram "maldosa" a entrada de Vavá. Na goleada final contra a Suécia, gols antológicos de Didi e Pelé acabaram de coroar o "futebol-arte". Ao erguer a taça Jules Rimet, o capitão Bellini a um só tempo celebrava uma conquista inédita, lavava a honra nacional e criava mais um símbolo para a euforia dos anos JK. Bellini e Pelé não concederam entrevistas a Asbeg.
Não dá para entender. Seus gestos históricos aqui estão - mas não suas vozes. Azar deles. É muito raro o cinema celebrar o futebol com tamanha felicidade.
Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.
E-mail: labaki@etudoverdade.com.br
Site do festival: www.etudoverdade.com.br