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‘Nem tinha vontade de ver jogos’, diz Miguel Ângelo, de volta após 3 anos

Campeão mundial, técnico aceita convite para comandar o time de basquete do Tijuca, sonha em voltar a uma seleção e critica 'invasão' estrangeira

Por Danielle Rocha Rio de Janeiro
 
A passagem para Fernando de Noronha já estava comprada. Durante anos, a viagem fez parte dos planos de Miguel Ângelo da Luz e sua esposa. Por inúmeras vezes, não saiu do papel e ficou guardada como um desejo do casal. Estava prestes a se tornar realidade no domingo que vem, até que o telefone tocou e... a poltrona do avião ganhou novo dono, foi herdada pelo filho, e o Tijuca ganhou novo técnico. Aos 52 anos, Miguel Ângelo da Luz sabe que perderá as férias dos sonhos, mas diz que o basquete falou mais alto.

Miguel Ângelo da Luz é apresentado pelo Tijuca (Foto: Colin Foster / Tijuca TC)Miguel Ângelo da Luz foi apresentado oficialmente na terça-feira (Foto: Colin Foster / Tijuca TC)

As portas começaram a se abrir na quinta passada, depois que Miguel Palmier resolveu deixar o cargo. No sábado, veio o convite e ele resolveu aceitar. Queria sentir novamente o gostinho de estar à frente de uma equipe. Desde 2007, não era visto na lateral da quadra, dando orientações a um time profissional. A última vez foi com a seleção do México. No Brasil, a despedida aconteceu um ano antes, com o Uberlândia.

- Depois dali, houve um tempo em que eu não queria nem ver jogo de basquete. Depois percebi que era besteira - disse o novo treinador.

No reencontro com pupilos de outros carnavais, o papo foi sobre família. Miguel mostrava satisfação por ter os dois filhos com carreiras bem encaminhadas, e também por estar de novo pisando num ginásio para comandar Olívia e Rodrigo Bahia. Arrancou risadas ao dizer que seria "brabo ter que aturar Olívia de novo", e foi logo avisado pelo experiente pivô de que nos últimos tempos anda um atleta meio rabugento. O papo só foi interrompido para dar um abraço nos integrantes da comissão técnica do Rio de Janeiro, que chegava para treinar. Mas ainda faltava o de Bernardinho. Miguel, que passou os últimos três anos como coordenador de esportes olímpicos do Botafogo, queria pegar os "bons fluídos" do amigo, com incontestável fama de vencedor.

- Nós surgimos juntos para o esporte. Ele teve continuidade, acreditaram no trabalho dele na seleção. Hoje fui ali pegar os fluídos positivos. Sempre que possível sentamos para conversar. No ano passado almocei com ele uma duas vezes e sempre aprendo muito com a obstinação dele. Disse que estava feliz de me ver e desejou muita sorte.

Nos próximos dois jogos fora de casa, contra Araraquara e Limeira, Miguel Ângelo ainda assistirá a tudo da arquibancada. Enquanto espera para assinar o contrato e ser inscrito como novo técnico do Tijuca, a voz de comando será do assistente Éldio Leal. A primeira meta de Miguel é levar o grupo aos playoffs de quartas de final do NBB. Mas a vontade é de ir mais longe. Cheio de apetite, sonha também com o dia em que poderá voltar a fazer parte da comissão técnica de uma seleção brasileira, e de ver menos estrangeiros, em sua mesma função, atuando no Brasil.

Bernardinho e Miguel Ângelo da Luz  (Foto: Danielle Rocha / Globoesporte.com) 
Miguel recebe o abraço de Bernardinho no ginásio
(Foto: Danielle Rocha / Globoesporte.com)


GLOBOESPORTE.COM: O que motivou você a voltar ao comando de uma equipe?

MIGUEL ÂNGELO: Me deu saudade e surgiu o desafio. E a conversa com os dirigentes, que me fizeram uma proposta inédita na minha carreira de assumir nesta edição da liga e continuar na próxima temporada toda. Por três anos fui trabalhar com gestão, mas nunca me afastei do basquete. Volta e meia dava treinos para as equipes de base do Botafogo. Gostaria de ter montado um time lá, mas a entrada no NBB era muito difícil e teríamos de fazer um investimento grande. Durante um tempo, meu filho me falava que um jogo estava passando na TV. Só que eu não tinha nem vontade de ver. Ela só voltou no ano passado. Eu via muitos técnicos estrangeiros no nosso basquete e algo me dizia que era a hora de voltar. Nunca trabalhei aqui e sempre tive vontade. Mas em nenhum momento fiquei me oferecendo aos clubes. É uma questão de ética.

O que fez para tentar ocupar o vazio do basquete na sua vida nesses três anos?
Eu tive propostas para voltar para a Venezuela (treinou o Marinos) e para um time do México, só que eu queria voltar a dirigir um time no Brasil. Mas sempre me falavam que eu era muito caro. Em 2008, um clube me chamou. Dormi técnico e acordei desempregrado. O dirigente disse que não podia deixar de atender ao pedido de um amigo. Então, fiquei estudando as características do basquete mundial, fazendo comentários. No Botafogo, dava uns treinos na base. Acabava que o basquete estava vivo para mim, eu não o abandonei. Mesmo quando eu tinha aquela besteira de não querer ir ver num ginásio ou na TV.

Como foi a experiência na área de gestão esportiva?
Em 2000, eu tive a oportunidade de também trabalhar nessa área no Flamengo. Embora tenha sido ano olímpico, foi difícil arranjar patrocinadores. E continua sendo difícil. No Botafogo, conseguimos convênios. O empresário costuma ter receio de investir nos esportes olímpicos em clubes de futebol. Mas achei a experiência superproveitosa. Quem sabe eu não possa voltar a fazer isso como uma atividade paralela? Mas neste momento, o meu coração e o basquete falaram mais alto.

O que já pôde avaliar do grupo e como vai ser trabalhar com uma equipe formada basicamente com jogadores mais velhos?
Já vi alguns jogos e o time tem muita disposição. Isso é importante. Na última partida (vitória sobre o Franca após duas prorrogações) deu vontade de pular a grade e dirigir a equipe. Com a saída do Arnaldinho (fez uma cirurgia) e do Gegê, que tem uma lesão no tornozelo e é um jovem promissor, a aramção tem grande dificuldade. Não que o Manteguinha e o Ricardinho não façam isso bem, mas a equipe fica meio capenga. Precisamos de um matador de três pontos, porque hoje só um ou outro jogador faz isso. Quando o Oscar montou aquele time mais velho (Telemar), com jogadores na casa dos 30 anos, foi maravilhoso porque conquistamos o título brasileiro. Acho que vai ser um desafio para mim de novo pegar uma equipe com jogadores mais veteranos. Sou padrinho de casamento do Olívia e já trabalhei com vários aqui. Vou ter que saber como anda o condicionamento físico de cada um, para poder dosar treinos.

Neste período em que esteve na função de gestor, o que viu mudar no estilo de jogo brasileiro?
O basquete está mais rápido, dinâmico. Os times estão começando a jogar como no basquete europeu. Sou fã desse estilo e vou ver se peço para o presidente do Tijuca para fazer um intercâmbio internacional na Espanha. Acho que as equipes aprenderam mais a valorizar a posse de bola. Antes a gente copiava muito mais o basquete americano.

O que é possível fazer pegando o Tijuca após 11 jogos (está em 10º lugar com quatro vitórias)?
O time é bom e o trabalho feito foi sério. Toda mudança tem certa dúvida, mas os garotos vão sentir a motivação. Se pegarmos plantel por plantel, não é um dos melhores, mas eu acredito. Já dirigi equipes que não eram tão favoritas e sei que posso ir mais longe do que as previsões dizem.

Miguel Ângelo da Luz é apresentado pelo Tijuca (Foto: Colin Foster / Tijuca TC) 

Técnico diz que estava na hora de voltar após ver muitos estrangeiros no cargo (Foto: Colin Foster/Tijuca TC)

Você tem no currículo um título mundial e uma medalha olímpica. Acha que foi pouco aproveitado na seleção feminina?
Acho que sim. A ponto de um dirigente da CBB me chamar em 97 e pedir que eu desse um tempo na carreira, porque eu tinha conseguido tudo com 33 anos de idade. Um amigo meu costuma dizer assim: "O pecado do Miguel foi ter ganho". Fui alijado do processo. Não faço parte de patota ou panela. Me dou bem com todo mundo.

Acredita que poderá voltar a ter uma oportunidade novamente na comissão técnica de uma seleção? Tem um bom relacionamento com as suas ex-jogadoras (Hortência e Janeth) que hoje fazem parte da equipe nacional fora da quadra?
Se vou ter eu não sei, mas que tenho vontade, tenho. Tenho que retribuir tudo o que o basquete me deu. Gostaria de estar na seleção, masculina ou feminina, mas não quero derrubar ninguém. Todo mundo que já foi a uma Olimpíada tem uma tatuagem dos aros olímpicos no corpo. Se eu for novamente, vou fazer uma. Eu me dou bem com Hortência e Janeth. Em 94, Janeth ainda não era aquela Janeth, mas uma promessa. Depois foi minha capitã.

O que você achou da dispensa de Ênio Vecchi?
Fiquei muito triste pela saída dele. Acho que foi uma falta de respeito com um profissional como ele. Acho que faltou um pouco de ética. Foi anunciado que Janeth poderá ser a técnica do próximo ciclo olímpico e poderiam ter avisado a ele um pouco antes. Houve um erro de estratégia para perder o Pan de Guadalajara, mas Ênio precisava ser mais respeitado. Foi meio tapa buraco. Tenho vários amigos desempregados ou que deveriam estar novamente na quadra: Bial, Flavio Davis, Ênio, Chupeta, Lula... Respeito os treinadores estrangeiros, mas temos um mercado pequeno.

Mas não acredita que o intercâmbio com um técnico como Rubén Magnano, por exemplo, seja importante?
Não tenho o que falar dele, porque ele está muito acima e o currículo diz tudo. É válido aprender com ele e quero chegar mais perto para isso. Magnano já modificou a cara do basquete brasileiro, mas com a vinda dele os clubes se interessaram mais pelos treinadores estrangeiros. Uberlândia já está no segundo, Flamengo tem um argentino. Estamos perdendo espaço. Faço parte da comissão da Escola Nacional de Treinadores e estamos nos organizando. Dirigi a seleção mexicana por seis meses e demorou um pouco para que eu conquistasse a simpatia dos técnicos e da mídia. Não posso falar do Magnano, mas e os outros que estão vindo? Sou muito patriota.

Dizer o que pensa no meio do basquete tem um preço alto a se pagar?
Ne período de reclusão, aprendi a engolir sapos. Digo que prefiro ficar vermelho na frente do que roxo depois. Se me perguntam eu falo. Não sou hipócrita. Não falo por trás. Ninguém gosta de ser criticado, mas as críticas que faço são construtivas. Não falo só por falar.

O que espera do Brasil nas Olimpíadas de Londres?
Nas duas podemos ir muito bem representados. Temos plantel para isso. Basta saber se o atleta vai estar a fim de vestir a camisa e seguir as regras do treinador. Não adianta ir meia bomba. No masculino temos uma seleção forte se tivermos a vinda do Varejão, Nenê e Leandrinho. Acho que poderá surpreender. Tem potencial para isso.